sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Asas do desejo


Magnífico
e terrível
é o acto de sopesar
por um lado
a sensualidade
da matéria
devendo
para tal
permitir-se
um mínimo
abandono
a que falta a alma
e por outro
habitar
essa amendoeira
do espírito
a que falta o objecto
o fruto
o perfume
e sabê-la essencial
para sobreviver
ao caos
e no entanto
apenas os pássaros
que se libertam de si
esses objetos voláteis
tem a mais exata
percepção
da volúpia do voo
e do ramo
onde devem pousar
e do tempo
e do relevo
do timbre
do seu canto
para poder
evitar o vórtice
ou o silex
que nos cegam
nas asas do desejo.
Lisboa, 5 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Cirurgia a fractura da tíbio com epidural


Naquele desvio
o anestesista
criou um canal
de irrigação
inventou
um rio
a transbordar
de imaginação
a noite
corria-me
na veia difícil
e confundia-se
com o dia
de uma simples
operação
sóis benévolos
reguláveis
pendiam
do tecto
havia marcianos
verdes
de máscara
e sangue
impávido
na pendência
dos recipientes
naturezas mortas
de inox
reflectiam
as cenas
dos próximos
capítulos
e um sono
epidural
a espraiar-se
em delta
na larga foz
dentro de mim
sempre
muito mais
sentimental
que cirúrgico.
Lisboa, 4 de Abril de 2016
Carlos Vieira

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Retrato de um homem pouco emotivo


No talho doce
do tronco de bétula
permanece o seu gesto
tranquilo e teatral
à direita de quem entra
apenas o conspirar
do rumor da seiva
que precede o silêncio
enquadrado da gravura
e a barba aparada
depois o fato cinzento
do retratado em pose
que aguarda o hino
sem se desfazer
de um olhar limpído
do bosque de súbito
pode surgir a lâmina
em cloreto de prata
e um pensamento
a preto e branco
que antecede piedoso
golpe ou assassino
muito eugénico
e de repente o ar
tornou-se irrespirável.
Lisboa, 4 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Retrato de Joseph Goebbels

domingo, 3 de abril de 2016

Na Páscoa...

na páscoa ao cruzar
o teu olhar de amêndoa
fez-me ressuscitar

Lisboa, 27 de Março de 2016

Carlos Vieira

A menina...

A menina
à minha frente
masca
pastilha elástica
distrai-se
a insuflar balões
de dez em dez
segundos
cria e destrói
novos mundos
com pouco açúcar
e muito fôlego
nada de dramas
tudo fácil
uma brincadeira
de crianças.
Lisboa, 3 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

O frio...

“O frio é a porta do desaparecimento, a proximidade do não-ser”, diz o poeta e ensaísta Antonio Gamoneda, autor de Líbro del Frío (1992) e uma das vozes mais poderosas e singulares da poesia espanhola.

A vida medicamente assistida de poesia


As gotas
de soro
desciam
pela pequena
mangueira
transparente
e entravam-lhe
pela agulha
no antebraço
ele teve
um sorriso raro
e de seguida
um esgar de dor
no rosto esquálido
e implorou
à suave enfermeira:
" - Se não se importa
misture-lhe a poesia
da eternidade,
preciso apenas
de um pouco de descanso!"
Lisboa, 3 de Abril de 2016
Carlos Vieira