sábado, 2 de abril de 2016

L'hotel

L’hotel
Ma chambre a la forme d’une cage,
Le soleil passe son bras par la fenêtre.
Mais moi qui veux fumer pour faire des mirages,
J’allume au feu du jour ma cigarette,
Je ne veux pas travailler — je veux fumer.

Guillaume Apollinaire



Falsificação grosseira de um sonho de Van Gogh


Sonho
este sabor acre
e o tom ocre
no silêncio caiado
o serpenteado
das ruas
de casas térreas
e a tinta lascada
das portadas
os olhares crus
emboscadas
nas cortinas
de tule
gosto do zumbir
de insectos
e de o burro
a zurrar
a inquietar a tarde
nessa altura
será perfeito
se houver um corvo
ou o adeus de ouro
de um campo de trigo
entre o cobalto azul
e o véu da nuvem
sonharei
no meu pastel
de pigmentos
de girassol
o retoque final
em que de pé
tocarei o céu
alguém mais atrevido
poderá comentar
que me caiu
uma estrela
na paleta.
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Tentilhão

Tentilhão
brinquedo de sol
e asas
de lés a lés
sobrevoa 
em linhas
sinuosas
em elipses
em loucura
o quintal
canta e canta
inaugura
a primavera
no delicado
equilíbrio
de nylon
da corda
do estendal.
Lisboa, 21 de março de 2016
Carlos Vieira

Cardo...

Cardo
relógio vegetal
que ao rasgar-lhe
as vestes
desnudando-a
petrificou
o tempo.

Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira



Elegia a uma morte fulminante


Bebeu
até à última gota
a aguarela forte
a bailar-lhe
a correr-lhe
nas veias
bela imagem
imaterial
a um tempo
noutro cerebral
por fim
última viagem
de coágulo
fatal.
Lisboa, 2 de abril de 2016
Carlos Vieira

A cidade etérea e as lágrimas artificiais


Segura
o conta-gotas
a sua mão
trémula
e caiem
uma a uma
as lágrimas
artificiais
e germina
de novo
um brilho
húmido
no seu olhar
toldado
e a cidade
adquire
do esborratado
contorno
a partir
da janela
a ingenuidade
etérea
de uma solidão
de aguarela.
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Outro dia de juízo final

Hoje
é o dia das mentiras
e dia de satisfazer
os créditos.
Ontem
houve um mal entendido
com o seguro de vida.
Amanhã
não existirá margem
para errar
dado que o comboio
passa apenas uma vez.
Nunca saberemos
toda a verdade
por mais
que nos esfalfemos!
A verdade é como
o azeite
é amarela!
Os historiadores
os investigadores
apressem-se a fazer
reconstituições
até ao mínimo
detalhe
sem preconceitos.
Os sociólogos
enaltecem
as médias
e o lugares comuns.
Os cientistas
os estudiosos
extremosos
do rigor
da não contaminação
ensaiam e fazem
modelos
na sua religião
de tentativa e erro.
Fazem-se testes
avaliações
estimativas
e artigos
em revistas
da especialidade
e atingem-se
todas as ISOS.
Escolhe-se
a roupa
segundo
a previsão
meteroloógica
e assumimos
atitudes
a combinar.
Vive-se
como se não
houvessse
amanhã
e morre-se
todos os dias
sem dar por isso.
Temos direito
a ser desenganados!
Abalam-se
as nossas certezas,
não ousamos
porque
a dúvida
é um caminho
pantanoso
e nós preferimos
o nosso cantinho
sossegado
e arranjar
se possível
pé de meia.
E apanha-se
mais depressa
um mentiroso
que um coxo.
Continua
a não ser justo
que pague
o virtuoso
pelo pecador.
Hoje no dia
das mentiras
mais vale mais
um vale
mais um criminoso
solto
que um outro
inocente
na cadeia.
Eu gosto de poesia
e também atiro pedras
e ainda jogo
à verdade
e consequência
outros bebem
o chá das cinco
e piscam olhares
libidinosos
há muitos
que preferem
a roleta russa
ou a missa dominical
a ir ao casino.
Lisboa, 1 de Abril de 2016
Carlos Vieira