sábado, 2 de abril de 2016

A cidade etérea e as lágrimas artificiais


Segura
o conta-gotas
a sua mão
trémula
e caiem
uma a uma
as lágrimas
artificiais
e germina
de novo
um brilho
húmido
no seu olhar
toldado
e a cidade
adquire
do esborratado
contorno
a partir
da janela
a ingenuidade
etérea
de uma solidão
de aguarela.
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Outro dia de juízo final

Hoje
é o dia das mentiras
e dia de satisfazer
os créditos.
Ontem
houve um mal entendido
com o seguro de vida.
Amanhã
não existirá margem
para errar
dado que o comboio
passa apenas uma vez.
Nunca saberemos
toda a verdade
por mais
que nos esfalfemos!
A verdade é como
o azeite
é amarela!
Os historiadores
os investigadores
apressem-se a fazer
reconstituições
até ao mínimo
detalhe
sem preconceitos.
Os sociólogos
enaltecem
as médias
e o lugares comuns.
Os cientistas
os estudiosos
extremosos
do rigor
da não contaminação
ensaiam e fazem
modelos
na sua religião
de tentativa e erro.
Fazem-se testes
avaliações
estimativas
e artigos
em revistas
da especialidade
e atingem-se
todas as ISOS.
Escolhe-se
a roupa
segundo
a previsão
meteroloógica
e assumimos
atitudes
a combinar.
Vive-se
como se não
houvessse
amanhã
e morre-se
todos os dias
sem dar por isso.
Temos direito
a ser desenganados!
Abalam-se
as nossas certezas,
não ousamos
porque
a dúvida
é um caminho
pantanoso
e nós preferimos
o nosso cantinho
sossegado
e arranjar
se possível
pé de meia.
E apanha-se
mais depressa
um mentiroso
que um coxo.
Continua
a não ser justo
que pague
o virtuoso
pelo pecador.
Hoje no dia
das mentiras
mais vale mais
um vale
mais um criminoso
solto
que um outro
inocente
na cadeia.
Eu gosto de poesia
e também atiro pedras
e ainda jogo
à verdade
e consequência
outros bebem
o chá das cinco
e piscam olhares
libidinosos
há muitos
que preferem
a roleta russa
ou a missa dominical
a ir ao casino.
Lisboa, 1 de Abril de 2016
Carlos Vieira

os olhos secos...

os olhos secos
e o olhar também
diagnóstico
falta de lágrima
falta de luz
Lisboa, 1 de abril de 2016
Carlos Vieira

Dançar na chuva


Por contágio
danço
porque chove
e porque
um cenário
de bailado
sempre
me ocorre
o compasso
do tamborilar
dos pingos
de chuva
no telhado
acontece
o regresso
ao fogo
do teu corpo
molhado
e por fim
inevitável
o seu estertor
outra vez
o voo letal
e correm
nos beirais
e nas gárgulas
cristais
que caiem
nas minhas mãos
de novo
a sobrevoarem
o vazio infinito.
Lisboa, 1 de abril de 2016
Carlos Vieira

dou corda aos sapatos...

dou corda aos sapatos, estugo a passada, é impossível ultrapassar a minha sombra e muito menos o indefinido diâmetro da tua, o seu ritmo interior e secreto peso, na urgência do amor o céu é o limite
Lisboa, 1 de março de 2016
Carlos Vieira

segunda-feira, 28 de março de 2016

Delírio de Corto Maltese

Delírio de Corto Maltese

Meu amor
sabes-me
a navegar
sem alternativas
por entre escolhos
contra corrente
sabes do sal
da maresia
nos meus lábios
a beijar
teus olhos
sabes
dos argumentos
de ventos
no cabelo
emaranhado
meu amor
nesta viagem
de novo
capitão
do meu leito
na tua solidão
só sei de ti
e do teu jeito
tudo desfeito
no rodopiar
do leme
à proa
desta
nau sem rumo
minha princesa
perene
e sempre
reinventada
a todo
o momento
em coroas
de espuma
e diademas
de firmamento.

Lisboa, 28 de Março de 2016
Carlos Vieira

Separação de águas



Que existirá por detrás
da escória humana
que reflexo condicionado
no gesto fétido
e que indecisa cobardia
que objeto ocasional
constrói essa penumbra
onde se tece hábil
o sorriso rasteiro
que fogo inquisidor
quis a palavra fácil
ou astuta armadilha
ao pretender confundir
a mais pura afeição
foi do cinturão
quando era ainda
ternura afável
que se empunhou
a lâmina justa
que veio a desferir
o golpe cruel
ficaremos sempre
na estupefação
do inevitável?
ou continuaremos
este hercúlea tarefa
da impossível
separação de águas
no lençol tranquilo
desse reflexo tão subtil
como valioso
da ondulação suave
dos versos
e reversos da poesia
e da vida.


Lisboa, 28 de Março de 2016
Carlos Vieira