sábado, 26 de março de 2016

Amando-te


Sei de cor os teus olhos
se olho para ti ou por ti
de tanto decantar a cor
e a sombra do teu olhar
de te cegar de beijos
de beber o veneno
da convulsão do pranto
do suado elixir de alegria
cresce a erupção de raiva
no teu corpo em arco
e a vibrante ereção solta
uma flecha do êxtase.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira



Vende-se casa assombrada

Vende-se casa assombrada
Esta noite
outra vez
este retângulo
de um sonho recorrente
de quatro paredes
hipotecado
uma casa mãe
sem telhado
e sem janelas
de água
à volta
da cintura
a precisar de obras
lembro-me
o mesmo assobiar
do vento
a mesma porta
a gemer
pequenas surpresas
acordo
na minha antiga
cama de ferro
que flutua
outra vez
ancorada no tempo
era dos meus bisavôs
na chaminé
uma pirâmide
de fumo
vai até ao céu
pode ouvir-se
o rumor
da tua voz
a crepitar
no fogão de sala
na manhã
uma estranha ausência
de fogo
como se alguém
tivesse desistido
da infância
não tenha dúvidas
você não está
a comprar uma casa
vai viver
a história.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Foto de Luigi Ghirri

A folha

A folha
efémera filigrana
à deriva na corrente
que foi estandarte
de sangue verde
que o imperceptível
sopro no respirar
da palavra sol
soltou do pecíolo

Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


"Drifting" Luigi Quarta

sem passado nem futuro...

sem passado nem futuro
nas linhas das tuas mãos
fiquei preso
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Nota epistolar II


O homem
desempregado
é uma silhueta
ou uma transparência
“a idade não ajuda!"
caminha todo nu
com as mãos
nos bolsos vazios
é uma ilha
frágil embarcação
tem o rumo das filas
“dos desempregados
de longa duração"
em direção ao guichet
do centro de emprego
na sua cabeça
tudo anda à roda
enquanto preenche
o formulário
as palavras dançam
juntamente
as prestações da casa
por pagar
"desculpe podia repetir!"
há um cisma na família
antes éramos tão unidos
é claro que há sempre
uma tendência
para a fragmentação
é a física
"oh criatura
onde é que você
está com a cabeça!"
há sonhos em ruínas
“tem que ter
um espírito empreendedor!"
podemos sempre
reerguer-nos
subir a pulso
“desça à terra
senão não saímos daqui!"
há sempre alguém
que lhe bate nas costas
com as palavras
de incentivo
que ouve já longe
"vai ver que aparece
qualquer coisa!"
foge de casa
e a casa vem atrás dele
“ o seu problema
é que tem demasiadas
qualificações!"
e tem fome também
sem palavras
outro problema
sempre viveu entre
a realidade e a fição
sem as distinguir
uma certa loucura
uma certa falta
de pragmatismo
“só não trabalha
quem não quer trabalhar!"
o homem desempregado
prosseguiu
uma testemunha ocular
ainda o viu
pela última vez voar
da ponte até ao rio
e assim desceu
o desemprego
"também não andava
cá a fazer nada!"
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Foto de Carlos Spottorno

Nota epistolar I


Naquele tempo
o homem caminhava
por atalhos
cozido pelos alpendres
e esquinas
olhares emboscados
apedrejavam-no
como a um cão vadio
escorraçado
e pareciam dizer
ali vai aquele
que mordeu a mão
a quem lhe deu
de comer
por amor à justiça
algo no entanto
na cidade
ficou por saber
se este era um caso
de ingratidão
ou o preço a pagar
pela liberdade.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Imagem Argyle Palias em Flickr

Por entre o garatujar

Por entre
o garatujar
de um intrincado
despacho
vou sopesando
observo
o gato prateado
emboscado
atrás do tronco
de uma faia
em suspenso
o gesto felino
e o burocrata
sem golpe de asa
cercados
por um amável
muro
cor de rosa.
Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira