sexta-feira, 25 de março de 2016

Romãs


I
sonho
o corar das romãs
nas mãos da minha avó
ardendo sobre o papel pardo
sobrevoando a balança decimal
II
sonho
uma romã nas mãos
da minha mãe
no paraíso do quintal
ao fundo precário
um equilibrio horizontal
o azul do céu
e o verde do pinhal
III
sonho
a romã e o pecado
a pintarem de sofreguidão
os teus macios lábios
rubros e insaciáveis
e tuas mãos
desesperadas.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira


pela janela espreita...

pela janela espreita
escorre o olhar de humana solidão
acentuada pela companhia de flores artificiais
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Poema para uma criança síria



No seu rosto
é possível vislumbrar
o deserto
num grão de areia
lavado de lágrimas
mesmo ali
por debaixo da pele
a inquietude
o rasto das lagartas
jogar às escondidas
nas sepulturas
cavadas pelas bombas
chove violentamente
no seu olhar perplexo
sucedem-se elipses
de pássaros e mísseis
frenéticos os ramos
e a paz indiferente
das oliveiras
nessa perigosa estrada
que os leva
para longe
das longínquas
brincadeiras
dos antigos jardins
ocultos
agora numa Damasco
a quem vai faltando
às crianças
o conhecimento
das flores.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira



Arrábida VI




No lado negro da lua
uma nuvem de cimento
pinta de cinzento 
as casas
e a vegetação endémica
a serra emagrece
salpicada pelas manchas
de terra esventrada
paira a poeira
e um ruído indescritível
dos motores
em diálogo tonitruante
com as rochas
o homem ergue-se
acima do colosso
de betão armado
respira ainda respira
comendo o pó
no esforço titânico
enquanto sobrevive
ao pulmão cavernoso.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira


Arrábida V


Sobrevoa os píncaros da serra
a águia-de-bonelli vence
o verde da encosta
e o céu em azul límpido
o aparo da caneta arranha
a carne intangível dos sonhos
e na pele da escrita
há um olhar de ave de rapina
gente alcandorada
e de garras na terra.
Portinhola da Arrábida, 16 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira


Arrábida IV


Sento-me
no fim da muralha
no final da tarde
uma única gaivota
por fim
dança
num bailado
de remiges e espuma
na derradeira
vaga
bate as asas
diz-me adeus.
Portinho da Arrábida, 16 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira


Arrábida III


O nevoeiro e o silêncio e os javalis
descem pela serra
feridas de calcário vencem a melancolia verde
reflexos de quartzo
e de peixes cansados do azul profundo
esgrimem entre aromas
de frutos silvestres e a voragem de beijos
dos namorados
desejos sublimes e razões obscuras.
Portinho da Arrábida, 16 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira