sexta-feira, 25 de março de 2016

Saborear a palavra


Asfixiar das sílabas
à flor dos teus lábios
fechar os olhos
por momentos
e sonho
não ir acabar
esse fogo de artifício
do deflagrar
de beijos.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Ensaio sentimental



De dentro
de uma câmpanula
nem o perfume do orvalho
ou o trinado obscuro dos pássaros
no coração verde das árvores seculares
nem a água fresca das palavras reencontradas
ou murmúrio em ziguezague do combóio a atravessar
os desfiladeiros da infância esborratados de tinta permanente
a respiração dos animais podem embaciar as certezas e lambuzar
de uma ternura sem medida toda a clarividência que poderia estilhaçar
este cristal de medo que nos entorpece que nos protege das mortes diárias
que me separam dessa insanidade que é a experiência de todos os dias estar
tão longe e tão perto de acreditar em ti.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira



Madrugada derradeira



Nas árvores de fruto
do quintal
um alvoroço de citrinos,
no bico do melro
o eco das laranjas
e de um Fevereiro ácido
que escorre o perfume
dos limões
sobre os amantes
vespertinos
que trocam olhares,
inquietos,
fustigados pelos golpes
de luz inoxidável
que antecede
as tempestades
que os adivinham
ladinos.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira


domingo, 28 de fevereiro de 2016

Passos de fantasma


Imagem de autor desconhecido

Noites 
de acordar repentinamente
no meio do sono
de me parecer voltar ouvir
essa inebriante melodia
já tão longínqua
dos pesitos pressurosos
de uma das filhas
que vinham esconjurar
fantasmas
aninhadas na minha cama
afinal era uma delas
que agora regressava
a casa
e somos nós
que não dormimos
por causa de fantasmas
de carne e osso
e elas hoje e sempre
as minhas pequenas
desconhecem a política
dos pequenos passos
e nesse vórtice
adolescente
querem dar
passos maiores
que a perna
como nos sonhos.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Vivo cercado...

Vivo cercado
no teu olhar
demorado
até se atear
um fogo
no rossio
do teu corpo
que interpelo
devagar.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira




FIRE WOMAN - Painting, 22x28 cm ©2005 by Frederick Epistola

Observatório I



Ave 
que pousa 
no meu sexo
que agora vai
cego guiado
pela tua mão
voltar a ver
tateando a curva
nocturna
dos teus ombros
o milagre
que é a visão
celestial
do teu corpo
estrelado.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira


Imagem da www de autor desconhecido

Brincadeira I



Lembras-te
havia a grande macieira
de maças camoesas
entre as nossa casas
naquela penumbra
perfumada
descobrir um ninho
era mais que o sonho
do qual desperto agora
repentinamente
oiço outra vez
a estridente roldana
com que içavamos
o balde de zinco
os rostos
afogueados da brincadeira
refletidos na água fresca
que matava a sede
e a mágoa
de uma vida inteira.

Batalha, 28 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira



Gustav Klimt - Macieira