sexta-feira, 25 de março de 2016

Amor impróprio


“Narciso” Caravaggio (1594-96




Desperta
do amor vegetal
dessa coragem 
verde de raiva
e de pântano
deserta das horas
de tédio e cal
liberta-te
da tua lasciva
imagem
que adoras
na água estagnada
do tempo.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira



TAC


A osteoporose
sugere
uma flauta
e esculpe
um poema
de carne e osso
na enseada
da pelvis.
No vértice
a fractura exposta
o calcanhar de Aquiles
no limiar da sombra
subverte a admirável
singularidade
do ângulo morto
da platina ortopédica.
Ver-se
o verso e o reverso
logo depois
da última vértebra
alinhada
pela simetria sinuosa
do ilíaco
ancorar no estreito
do livre arbítrio
e nervo ciático.
O que nos separa
e nos aproxima da morte
pode ser apenas
uma dor lancinante
que nos morde
a medula
uma espécie de música
e de absurdo
e falta de nexo
o que nos estimula
um amplexo
de amor infinito
que nos estrangula
que se acentua
no lado esquerdo
do peito.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira
Pelvis with the Distance - Georgia O'Keeffe



corações de penumbra...

corações de penumbra
e candeias de clorofila
bosque onde exploro
fugidios os teus reflexos
a surpreendente bondade
do teu gesto hábil
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

À volta das palavras



Gosto de ir 
em busca do centro 
da palavra
e dali irradiar
subir
ao seu cume
o medir o eco
e sondar
a sua profundidade
até ao infinito
de tanto me deitar
com elas
se apoderaram
de mim
resta-me
nas mãos vazias
a alegria breve
beijar
o corpo da escrita
com o olhar
o meio e o fim.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira



Saborear a palavra


Asfixiar das sílabas
à flor dos teus lábios
fechar os olhos
por momentos
e sonho
não ir acabar
esse fogo de artifício
do deflagrar
de beijos.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Ensaio sentimental



De dentro
de uma câmpanula
nem o perfume do orvalho
ou o trinado obscuro dos pássaros
no coração verde das árvores seculares
nem a água fresca das palavras reencontradas
ou murmúrio em ziguezague do combóio a atravessar
os desfiladeiros da infância esborratados de tinta permanente
a respiração dos animais podem embaciar as certezas e lambuzar
de uma ternura sem medida toda a clarividência que poderia estilhaçar
este cristal de medo que nos entorpece que nos protege das mortes diárias
que me separam dessa insanidade que é a experiência de todos os dias estar
tão longe e tão perto de acreditar em ti.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira



Madrugada derradeira



Nas árvores de fruto
do quintal
um alvoroço de citrinos,
no bico do melro
o eco das laranjas
e de um Fevereiro ácido
que escorre o perfume
dos limões
sobre os amantes
vespertinos
que trocam olhares,
inquietos,
fustigados pelos golpes
de luz inoxidável
que antecede
as tempestades
que os adivinham
ladinos.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira