segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

18 instantâneos urbanos


I
oiço a mota
em fim de vida
em escape livre
II
no gume das esquinas
nos círculo da penumbra
olhares acutilantes
III
a incontroversa demência
dos semáforos
face aos olhos azuis
e os lábios vermelhos
da transeunte
IV
no primeiro andar
com o focinho entre as grades
um pequeno cão ladra
aparentemente sem sentido
V
nas esplanadas ao meio da tarde
as folhas pousadas na mesa
muda-se de estação
vira-se a página
VI
uma buzina insiste
perde a razão
na sua estridência
não se ouvem as nuvens
VII
uma fila
na paragem do autocarro
na vida contemporânea
uns sentados outros de pé
VIII
não há muita gente nesta praça
que venha para dar milho aos pombos
quase sempre os mais velhos
e os mais pobres
IX
no jardim público
a relva está bem tratada
não lhe chegaram os cortes
nem as crianças
X
nas voltas da nossa vida
o tráfego é caótico
uns a sair e outros a entrar
tanta via de sentido único
XI
no meio da praça
a estátua de mármore
olha-nos do seu pedestal
nós somos as estátuas
de carne no meio da rua
XII
faz este vento frio
entra para o túnel do metro
em busca de calor humano
sai com memórias
de óleo queimado
XIII
acende
o guarda chuva
e "apagua-se" no seu mundo
XIV
olha para os arranha-céus
para os reclames de néon
e para as montras em saldos
tudo coisas de deuses humanos
que cintilam mais
para homens de bolsos vazios
XV
a lua brilha
nos carris dos elétricos
mais tarde deles vão saltar faúlhas
e ficará o eco estridente dos freios
a propósito do nada e de tudo
uma festa em movimento
XVI
chove no cimo da calçada
elegante é a senhora e o macaco
em contraluz e o cinzento do céu
apenas um senão
ninguém pára para ajudar
na mudança do pneu
XVII
nas lojas de comércio tradicional
apenas param as moscas
há produtos fora de prazo
demasiado maduras as frutas
e os planos dos resistentes
XVIII
um guindaste
amarelo enferrujado
agoniza
na obra inacabada
uma mulher corre
esbaforida
a sua vida tem sempre
tanto por fazer
Lisboa, 27 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Poema ao amigo virtual


Este poema
é para ti
meu amigo virtual
ao virar
da esquina cibernética
ao tocar da tecla
onde algures
aguardas que surja
no firmamento do écran
de 13,3 polegadas
uma estrela
de píxeis refeita
por vezes
tua única companhia
e noutras de tanta descoberta
nessa solidão recreativa
avanças pela rede
sem rede
vais flutuando
no espaço sideral
por cima da espuma dos dias
na mancha láctea
um post é formigueiro de letras
dele fazes um grito lancinante
e do grito germina uma canção
esperas pela resposta
de quem não sabes
que não chega
e percebes
que existe
muito mais gente
com a tua pergunta
e apenas alguns
encontram a resposta
na cacofonia dos navegadores
gostas de estar online
viciaste-te
no teu desaparecimento
do mundo
apagas-te
reinicias-te em cada dia
a cada momento
no retângulo da tua atenção
atravessas continentes
rumo à etérea melodia
da tua inexistência
devoras migalhas
de ternura
nas breves palavras
tocas a ferida do silêncio
na pele do ecran táctil
deixaste de ser tímido
ou talvez não
falas agora
por detrás de um muro
que agora cerca
a tua vida digital
estabeleces pontes
e desconheces
o murmúrio da água
para onde corre esse rio
de sentimentos
sem foz
apenas sonhas
efémeros downloads
de um amor impossível
tu um peixe fora de água
de software incompatível
aprendes a nadar
no vórtice da corrente social
usando a tábua de salvação
de um reconhecido
anonimato
meu amigo virtual
eis-nos aqui de novo
face a face
de permeio
apenas o biombo
doméstico
nos desencontros da vida
e as nuas silhuetas
das memórias
a processarem outputs
de solidão real.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

O déspota

O déspota
que do sol
fez a espada
ficou cego
pela usura
da luz
ignora
estar preso
às trevas
nas masmorras
onde nasce
o sonho
mais audaz
e se ergue
delicada
a flor
da madrugada
inexpugnável.
Lisboa, 22 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Poema de um poeta e de um cavalo



um cavalo
dá um coice
em vão

um poeta
dá um coice
em verso

um coice
dá um verso
em falso

o cavalo
esse poeta
perverso

na noite
das estrelas
de um coice

na noite
a cavalo
de um verso

poeta
de montar
a noite

a monte
o poeta
e um cavalo

foi-se
de um coice
até à lua

luas
dos cavalos
e dos poetas

por fim assinam
de coice
ou de cruz

Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira








Pintura de Maqbool Fida Hussain

Pintura rupestre


Na caverna
um animal acossado
o rumor de um silêncio húmido
que o sílex de um olhar cauterizou
a palavra é um archote naquela boca
na margem deste rio subterrâneo
vencendo o torso do vazio
fruto maduro e afável
veado de sofreguidão
vencido.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Coleção



Reuni
para memória futura
meia dúzia de palavras

a palavra
jangada à deriva
no imenso e azul oceano

um pássaro exausto
sem sentido
no céu infinito

uma pegada breve
arrastada
nas dunas do deserto

o uivo selvagem
coração ferido
em trevas da floresta

a silhueta acossada
e a lâmina desembainhada
na esquina da noite

a chave
que liberta os corpos
da clausura do silêncio

aquele estâmpido
que algures
põe termo à solidão

uma língua de fogo
a devorar o mármore as igrejas
ávido de chuva

um insecto
que sobrevoa
a dança das searas

a ânfora submarina
que a suave memória dos lábios
ainda habita

o sino de bronze
zurzindo em vida
o eco da morte nas aldeias

a concha
caída numa praia sem regresso
e sem sossego

o botão
arrancado na urgência e na raiva
de um amor desesperado

a flor arrancada
e caída das mãos
do desencontro definitivo

a lâmpada
campânula de luz bruxuleante
que te cerca de insónia a ti e ao livro

o rosto cabisbaixo
em dias de arame farpado
e de angústia

por fim
um pião e um cordel
esquecidos no tempo do asfalto

a minha coleção
a aguardar a descoberta
de um jogo e de um sonho

espero agora
que a força centrífuga
da ilusão volte a girar.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira



"Le dejeuner sur l'herbe, 77", de Ana Vieira

domingo, 27 de dezembro de 2015

Poema para ti neste fim de Outono


Este fim de Outono
traz-me a filigrana
tecida pelos teus dedos
a renda das cortinas
de reflexos etéreos
onde o teu rosto
se emboscava
na vigília da solidão
no desencontro das esperas
um córrego de luz descia
do sopé do teu olhar
apagando as linhas
onde a beleza da matemática
foi possível
tu a multiplicar por mim
ainda que a respiração ofegante
do prazer
confluísse na inevitável
solução
da lágrimas e do suor
neste fim de Outono
ao despedir-me
do abismo das tuas ancas
fico cego
pela revoada dos teus cabelos
nos meus ombros
desencantam-me
a memórias de pássaros
que partiram
e dos beijos
que me recusaste
e que perdi
quando estavas
de costas
frente a frente
com o insondável
das tuas ausências
ou será que o amor
também hiberna.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira