domingo, 1 de novembro de 2015

Dias de pesca III

III

Há três anos, foi à pesca com um amigo de férias em S. Jorge, no seu pequeno barco, ao largo da Calheta, ele pescou uns vinte e tal peixes, diversas espécies e tamanhos. Tentou desesperado, industriar-me na arte e nas artes da pesca, a elegância e perícia na colocação do isco, a subtileza e decisão no içar da linha e da velocidade do carreto. Um esforço no sentido de me ganhar para aquela atividade, da qual retirava mais do que momentos de sossego, recolhimento e reflexão, enormes vantagens culinárias, filosofia que eu subscrevia com uma prática canhestra.
No final pesquei apenas meia garoupa, pois um outro predador marinho, antes da mesma chegar às minhas mãos, ficou com a parte melhor do meu suado pecúlio.
Naquele dia, porém o pior e melhor da pescaria foi um cerco de golfinhos à volta da embarcação, por momentos ficamos maravilhados com a atenção dispensada, por animais tão encantadores, no entanto face ao assédio, começamos a sentir-nos um pouco peixe fora de água e que talvez o singular interesse dos “amigos" anfíbios, não seria somente, algum espetáculo coreográfico que teriam preparado para nós. O meu amigo puxou a corda do motor fora de borda, pusemos o rabo entre as pernas e despedido-nos dos “simpáticos” animais.

Lisboa, 1 de Novembro de 2015

Carlos Vieira 

Dias de pesca II


II
Foi há 33 anos. mais coisa menos coisa, era uma manhã soalheira de Outubro, que após sugestão aliciante de robalos grelhados, me aventurei na pesca marítima, ali para zona de Oeiras com o meu amigo Filipe, entusiasmados, apetrechos em ordem, local estrategicamente escolhido com conselho de pescador experimentado, um mar a condizer, isto é, mais ou menos agitado.
Após horas de impaciência, de bóias imóveis, sem apresentarem o mínimo nervoso, a flutuarem por vezes com imperceptíveis mudanças de humor, de olhares atentos e de iscos sucessivamente perdidos, reluziu, no cinzento escuro de uma rocha, uma aliança!
Milagre, um sinal premonitório ou apenas de um pescador distraído que no ardor da pesca, de um peixe mais fogoso, se esqueceu do casamento, ou mais precisamente, daquele símbolo "para vida" , terá sido a mesma, apenas usada para fazer peso na linha ou talvez ali tivesse começado um divórcio,
o meu foi durante muitos anos com a pesca, essa forma de casamento onde apenas nos traímos a nós próprios e, por vezes, podemos enganar os peixes mais guloso
ou mais esfomeado, eu nem esses.
Lisboa, 1 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Dias de pesca I


I
De todas as minhas
recordações da pesca
existe algo e comum
nunca pesquei nada
daí retirei a conclusão
que posso ser peixe
ou seja algures na minha
árvore genealógica
gerações atrás
pode aparecer
num dos ramos
algum espadarte
pendurado.
Lisboa, 1 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poema do amor impossível


ía jurar
que a conheço
de a ver um dia
em sonhos
abraçada
aquilo que eu fui
foste o sol
podias ser o meu sol
que vinha comigo
de braço dado
do liceu
agora passo
por ti
e vejo ainda
o balouçar
daquela saia de pregas
acenas
naturalmente
como as árvores
e as flores
de todos os jardins
onde passamos
olhas-me
não me reconheces
e corres pela relva
com teu sorriso
límpido
eu já não vou
atrás de ti
volto aquele espelho
de um amor
platónico
no fundo
eu é que tive sempre
ausente
parto depois
de te rever
imagino-te
reinvento-te
ao vento
confesso-lhe
o que não lhe disse
e danço a solo
sem saber
o que te move
o que te comove
não sabia
do teu rumo
ía jurar
que cheguei
a saber quem eras
e nunca fui muito forte
em matemática
nesse tempo
em que não sabia amar
ou talvez nunca
soubesse
e tu fosses aquilo
que nunca procurei
ou talvez
não te pudesse
reconhecer
noutro lugar
noutro tempo.
Lisboa, 1980
Carlos Vieira

sábado, 31 de outubro de 2015

Mais um poema para um sem abrigo numa noite de Outono



escuta
nos paralelepípedos do granito molhado
pressurosos passos
a queda de um corpo

espreita
o luar que insinua um prazer
quase desvendado a arfar na blusa branca
um botão que salta

sussurra
uma porta entreaberta
e um rosto febril por detrás da cortina
esgueira-se um gato

sorria
no seu circunlóquio
o velho alfarrabista a desfolhar o ulmeiro
pousa-lhe um pássaro no olhar

olvida
no gume do silêncio
a ferrugem que é estertor do tempo
sangue vivo na lâmina

chove
só as bátegas de água na casa
primeiro andamento de sonata de Outono
memória dos seus dedos

corre
na fonte uma água antiga
na sua fronte corre água da chuva
insaciável

cala
a dor e a morte que se acentua
e o Inverno que se avizinha e a perpetua
sem saber escolher as palavras

observa
as luzes dos faróis a ofuscarem
a supremacia da noite e o vagar dos animais
tem as calças rotas e o coração suspenso

adormece
nada está conforme
amanhã será despejado e dorme a sono solto
sobrevive indiferente à indiferença.

Lisboa, 31 de Outubro de 2015
Carlos Vieira




Nocturno nas margens do Tamisa


I
Observo-te
inquieta e tímida
na penumbra
no biombo
de um verso
da hora da partida
esta noite
vai perder-se
o silêncio
perverso
da tua mão
a pousar
subtil no corrimão
do undergound
em Victoria Station.
II
Apenas
candeeiros
periclitantes
insalubres
e retardatários
regressam
da tua ausência
que se traduz
nas águas
agitadas
do Tamisa
atravessas
na tua gabardine
creme
o caos e a a zona
dos guindastes
consome-te
o desejo
a mim o medo.
III
Devora-te
a solidão crua
da luz
o naufrágio
de transparentes
mistérios
e ângulos agudos
de cristal
devora-te
o precário
o "open space"
a cidade moderna
que se esgota
em espanto
escuto a tua voz
moderada
mansa
e sigo-te
na elipse
sumptuosa
do teu adeus.
IV
Convive
o teu perfume
com torres
e contos
ancestrais
efervescentes
enquanto ali
no leito do rio
o murmúrio
que adivinho
na corrente
do teu corpo
sedento
me aniquila.
V
O que em ti
me seduz
é a elegância
do quase nada
o desespero
de um amor
que por vezes
não corresponde
que não se adapta
que não se adota
o que resta
de ironia
e de um acre
da tristeza
submersa
de um fim
de festa.
VI
Espero por ti
transfigurado
por um dia
no cais
sobre tijolo
da perda
e do humor
britânico
entre especiarias
Índias
reflexos da prata
e do rumor
dos peixes
fora de água
como nós.
VII
Na recepção
vivemos
cumprimentos
molhados
da barbatana
de gravata
e tailleur
e falta de ar
do protocolo
a ponte ávida
aguarda
lá fora
como eu
a tua passagem
por vezes
melancólica
outras
gloriosa.
VIII
Isolas-te
na torre
eu fico
amarrado
à ditadura
do tempo
sempre
cedo perante
a vertigem
do teu semblante
espero-te a cintilar
mesmo
se o nevoeiro
de um qualquer
Dickens
recalcitrante
me negar
de novo
a luz húmida
do teu olhar.
IX
Espero-te
depois de Trafalgar
da vigilância
desajeitada
de um esquilo
e do súbito
espreguiçar
das asas
de um pato real
junto
ao lago do parque
tu receosa
vives camuflada
no musgo
das sombras
nas margens
de ternura
que se mistura
ao luar
temperando
o punhal
da impossibilidade
de em ti germinar
nem que fosse
por uma vez
violento
e impenitente
do amor
o gesto
libertador.
Londres, 28 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Logro


logro
(é) o oscular sôfrego
do lóbulo
logro
(é) o beijo a resvalar
sobre o sobrolho
logro
(são) as tréguas
dos teus lábios
logro
(é) a boca de veludo
polpa de nêspera
logro
(é) da nuca à omoplata
meu trapézio
logro
(é) desengano
ou o fim do mistério
logro
(é) a tua lágrima
preliminar da chuva
logro
(é) o sorriso insólito
um desconcerto
logro
(é) carícia em falso
na curva da face ausente
logro
(é) o teu murmúrio
ser apenas a brisa da manhã
logro
(é) esta singela armadilha
um suave veneno
logro
(são) os fragmentos de silêncio
na memória da pele
Lisboa, 26 de Outubro de 2015
Carlos Vieira