sábado, 19 de setembro de 2015

Por uma lágrima tua



Lágrima
súbito rumor
que bebo no bisel
dos teus lábios
e apaga o canto
na garganta
e liberta
línguas de fogo
e desfaz
os nós cegos
em que por tanto
querer viver
em libertação
todos dias
de exaustão
morremos.

Lisboa, 18 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

Poema para um guarda num perdido posto de fronteira


Hoje fui mais este dia sem pássaros
sem árvores
sua frescura de clorofila de floresta
sem a poalha dourada
suspensa
nas clareiras
cercadas dos olhares em pânico
dos antílopes
e da impaciência das feras
hoje não houve insectos
insaciáveis
na sua ânsia de rendilhar a realidade
e as tardes do fim do Verão
nem a menor sombra de pecado cintilava
a contaminar
da inapelável solidão a pureza do tempo
não houve os peixes abandonados na água salobra
dos lagos
sucumbindo num vermelho desmaiado
nem das sua guelras gorgolejam
turvos reflexos de prata
e desolação
as flores na sua frívola petulância
não desabrocharam bocejos de tédio e mofo
em jarras baratas de cerâmica empoeirada
por debaixo da sombra periclitante
das teias
que coavam moscas
e a luz mortiça do crepúsculos
no refúgio das janelas
que depois adornava no louceiro
os copos de cristal
onde se pode vislumbrar
tempos longínquos de vinho nobres
e de festejos
hoje nem o ranger do soalho
o desperta
o estremece
nem o talho doce da mobília
nem o ocre silêncio dos baixos relevos do estuque
hoje quando sintonizava
em FM
a sua estação de rádio
veio-lhe à memória
histórias antigas de gaz pimenta e de crianças separadas
todo o doméstico encantamento
do seu pequeno mundo desabou
e a raiva paralisou-lhe o medo e as lágrimas
como é possível tantos quilómetros de esperança
e portais fechados a tanto sofrimento
e as crianças senhor!
sem visto
nem passaporte.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido

domingo, 13 de setembro de 2015

que um raio fulmine...

que um raio fulmine
o poema
que é como gaiola de Faraday
onde a palavra mais límpida
se turva
e o canto mais puro
dentro de si
anoitece

Lisboa, 13 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Poema para uma deusa adolescente que fugiu do 1.° andar da Praça Navona





Este é mais um texto que era para ser mais um poema menor, como são todos muitos que se alimentam de um amor maior pelos deserdados nas praças desta vida.
Conta mais uma história de uma princesa, da sua clausura numa torre de marfim, não fala dos seus algozes e de si mesma ou da sua tristeza infinita, nem aborda ao de leve a sua grande loucura, o seu amor desesperado, impossível, que foi o seu veneno e também e sua cura.
Não é esquecido o reino ao abandono, o seu fado, esse canto que se confunde com choro abafado e probreza envergonhada, onde com pouco esforço se escuta a percussão de grilhetas e nos tambores feitos de pele dos escravos as vergastadas do silêncio.
Na fonte da Praça sacia-se o mármore dos deuses e um menino louro com síndroma de Down toca realejo.
Escrevo um poema de uma princesa anoréctica, triste quase sempre, que numa noite de insónia foge pelo lençol das entrelaçadas palavras em surdina, para os braços de um sonho, braços que a libertaram da cruz dos garrotes num país esgotado, mártir que resiste, estranhamente ágil, salta para a garupa da incoerência, do corcel de ébano.
Joana d'Arc tatuada com coroa de piercings e de alma devorada pelo fogo, a sua cabeleira vermelha de bruxa ao vento desgrenhada, ergue uma espada de crua luz fluorescente, que roubou do guarda-roupa de um figurante do Star Wars.
No meio desse nevoeiro artificial, truncada descoberta de um novo tempo, limpo, sem compromisso, deusa deserdada, refém desse amor maior que nunca se entrega e que só com a sua morte a liberta, do Palazzo do 1.° andar da Praça Navona.
Este é um poema de uma princesa romana sem história.
Roma, 11 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

sábado, 5 de setembro de 2015

Madrigal aos tessalonissenses



Deixou-te na clausura
da tua solitária torre branca
a vigiar a terra macedónia
a intrépida aventura
do cavalo baio otomano
a galope na aura
e na planície etérea
o trirreme romano
sulcando as águas tépidas da baía
rasgam o sal da tua pele
nas montanhas a espreitar
os bonés companheiros
da Resistência
do Terceiro Reich a águia negra
sabem os itinerários
da esperança e da ignomínia
rainha helénica
frescor elegante de ânfora
inquieta repousas  
na penumbra dos teus aposentos
embevecida Penélope
bálsamo mediterrânico
de olhar húmido
ausente
ele permanece atónito
em distante viagem
cercado da sua tristeza vaga
refém da conquista e do canto de sereia
de uma saga envolta
na bruma ocidental
escravo da infinita busca
da verdade e de qualquer mito
de qualquer Atlântida
ou Europa solidária
de acrónico escrito
esquecido
que a verdade das coisas
do dracma e do euro
de tudo aquilo que se ganha
ou que se perde
e que se troca
é muito menos
que a eternidade
do beijo que se acende
e que morre
e que te morde
no sequiosa torre de coral
da tua boca.

Salónica, 4 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



domingo, 30 de agosto de 2015

Poema para um corpo vago e para uma casa vazia




Tão rudimentar
o que se constrói
sem ti
e tão desprovido
e qual o sentido?
sem ti.
sem dúvida
tudo é mais enxuto
sem rodeios
sem floreados
entre o inconseguimento
o inconsequente
e o frugal
sem ti.
apresentaste-te
em bruto
tu e a tua condição
sem títulos
sem ritual
sem dote.
inóspito
o rumo escolhido
e o que te escolheram
sem ti.
despes as tuas vestes
e percorres
os aposentos
e atravessas uma lâmina
de luz seminal
e demoras a tua atenção
num longínquo ruído
mecânico
minimal.
onde está assombração
do teu último movimento.
a indiferença jaz
espelhada
no rosto contido
a barba é de três dias
sem ti.
escapou-se-te
um murmúrio.
um gesto tímido ou de descuido
percorre-te um arrepio
pela coluna vertical
da memória.
um curto-circuito
no tédio rural.
ao longe observas
a cabisbaixa
paciência bovina de tarde animal
inquieto
é também
um sobrevoo de insecto.
o princípio de um texto
um pensamento
que ondula
na página do caderno
pontuado
pelos pingos que caiem da torneira
do eterno
no lava louça da cozinha
inoxidável.
a imagem das suas mãos molhadas
no tempo da palha de aço.
andas silenciosamente
em círculos
é este o estranho perfume da casa
da sua ausência
se retirarmos o cesto dos limões
que se torna também
no avesso
da sua impossibilidade
de esquecimento
e se um dia fosse real a serenidade
ela não seria nem por fugazes momentos
completamente sua!

Lisboa, 30 de Agosto de 2015
Carlos Vieira


Pintura “Absence and presence” de Mark Acetelli

Poema do amor maldito


Maldito
serei antes do veredito
depois de dar o dito por não dito
eternamente proscrito
por dizer o que devia ser dito
porque o silêncio é mais que um rito
não ficar incógnito
inaudito
por que busco ou não o infinito
por hipotecar esse amor tão bonito
e tão autêntico
à liberdade esse mito
em que acredito
em que sucumbo e me agito
e me contradito
maldito
mil vezes malditos
os poemas que regurgito
da tua ausência prosélitos
que sem cessar repito
meu amor aflito

grito
lancinante grito.
Lisboa,29 de Agosto de 2015
Carlos Vieira




Fotografia de Man Ray