domingo, 13 de setembro de 2015

Poema para uma deusa adolescente que fugiu do 1.° andar da Praça Navona





Este é mais um texto que era para ser mais um poema menor, como são todos muitos que se alimentam de um amor maior pelos deserdados nas praças desta vida.
Conta mais uma história de uma princesa, da sua clausura numa torre de marfim, não fala dos seus algozes e de si mesma ou da sua tristeza infinita, nem aborda ao de leve a sua grande loucura, o seu amor desesperado, impossível, que foi o seu veneno e também e sua cura.
Não é esquecido o reino ao abandono, o seu fado, esse canto que se confunde com choro abafado e probreza envergonhada, onde com pouco esforço se escuta a percussão de grilhetas e nos tambores feitos de pele dos escravos as vergastadas do silêncio.
Na fonte da Praça sacia-se o mármore dos deuses e um menino louro com síndroma de Down toca realejo.
Escrevo um poema de uma princesa anoréctica, triste quase sempre, que numa noite de insónia foge pelo lençol das entrelaçadas palavras em surdina, para os braços de um sonho, braços que a libertaram da cruz dos garrotes num país esgotado, mártir que resiste, estranhamente ágil, salta para a garupa da incoerência, do corcel de ébano.
Joana d'Arc tatuada com coroa de piercings e de alma devorada pelo fogo, a sua cabeleira vermelha de bruxa ao vento desgrenhada, ergue uma espada de crua luz fluorescente, que roubou do guarda-roupa de um figurante do Star Wars.
No meio desse nevoeiro artificial, truncada descoberta de um novo tempo, limpo, sem compromisso, deusa deserdada, refém desse amor maior que nunca se entrega e que só com a sua morte a liberta, do Palazzo do 1.° andar da Praça Navona.
Este é um poema de uma princesa romana sem história.
Roma, 11 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

sábado, 5 de setembro de 2015

Madrigal aos tessalonissenses



Deixou-te na clausura
da tua solitária torre branca
a vigiar a terra macedónia
a intrépida aventura
do cavalo baio otomano
a galope na aura
e na planície etérea
o trirreme romano
sulcando as águas tépidas da baía
rasgam o sal da tua pele
nas montanhas a espreitar
os bonés companheiros
da Resistência
do Terceiro Reich a águia negra
sabem os itinerários
da esperança e da ignomínia
rainha helénica
frescor elegante de ânfora
inquieta repousas  
na penumbra dos teus aposentos
embevecida Penélope
bálsamo mediterrânico
de olhar húmido
ausente
ele permanece atónito
em distante viagem
cercado da sua tristeza vaga
refém da conquista e do canto de sereia
de uma saga envolta
na bruma ocidental
escravo da infinita busca
da verdade e de qualquer mito
de qualquer Atlântida
ou Europa solidária
de acrónico escrito
esquecido
que a verdade das coisas
do dracma e do euro
de tudo aquilo que se ganha
ou que se perde
e que se troca
é muito menos
que a eternidade
do beijo que se acende
e que morre
e que te morde
no sequiosa torre de coral
da tua boca.

Salónica, 4 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



domingo, 30 de agosto de 2015

Poema para um corpo vago e para uma casa vazia




Tão rudimentar
o que se constrói
sem ti
e tão desprovido
e qual o sentido?
sem ti.
sem dúvida
tudo é mais enxuto
sem rodeios
sem floreados
entre o inconseguimento
o inconsequente
e o frugal
sem ti.
apresentaste-te
em bruto
tu e a tua condição
sem títulos
sem ritual
sem dote.
inóspito
o rumo escolhido
e o que te escolheram
sem ti.
despes as tuas vestes
e percorres
os aposentos
e atravessas uma lâmina
de luz seminal
e demoras a tua atenção
num longínquo ruído
mecânico
minimal.
onde está assombração
do teu último movimento.
a indiferença jaz
espelhada
no rosto contido
a barba é de três dias
sem ti.
escapou-se-te
um murmúrio.
um gesto tímido ou de descuido
percorre-te um arrepio
pela coluna vertical
da memória.
um curto-circuito
no tédio rural.
ao longe observas
a cabisbaixa
paciência bovina de tarde animal
inquieto
é também
um sobrevoo de insecto.
o princípio de um texto
um pensamento
que ondula
na página do caderno
pontuado
pelos pingos que caiem da torneira
do eterno
no lava louça da cozinha
inoxidável.
a imagem das suas mãos molhadas
no tempo da palha de aço.
andas silenciosamente
em círculos
é este o estranho perfume da casa
da sua ausência
se retirarmos o cesto dos limões
que se torna também
no avesso
da sua impossibilidade
de esquecimento
e se um dia fosse real a serenidade
ela não seria nem por fugazes momentos
completamente sua!

Lisboa, 30 de Agosto de 2015
Carlos Vieira


Pintura “Absence and presence” de Mark Acetelli

Poema do amor maldito


Maldito
serei antes do veredito
depois de dar o dito por não dito
eternamente proscrito
por dizer o que devia ser dito
porque o silêncio é mais que um rito
não ficar incógnito
inaudito
por que busco ou não o infinito
por hipotecar esse amor tão bonito
e tão autêntico
à liberdade esse mito
em que acredito
em que sucumbo e me agito
e me contradito
maldito
mil vezes malditos
os poemas que regurgito
da tua ausência prosélitos
que sem cessar repito
meu amor aflito

grito
lancinante grito.
Lisboa,29 de Agosto de 2015
Carlos Vieira




Fotografia de Man Ray

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Noite de breu e de bruma



ali estás
a vida
no meio de um mar
que está também 
de pernas para o ar

sobre si cai
a chuva de estrelas
melancólica
anunciada
pela voz rouca
das cagarras
que sobrevoam
a distância
entre os dois castanheiros
do quintal

entretanto explode
a fragância dos aromas
encontras precário
um caminho de luz 
e mistério
que se desfaz
em amálgama de espuma
e insónia

sobre o abismo 
o esplendor da noite e do canal
atravessas a ponte
de que desconheces
o rumo marginal

o manto da maresia
cobre a urze
em filigrana de prata
de nada
e sono

os melros
de bico amarelo
debicam a névoa
e por vezes a carne rosada
a bondade
dos figos


nas tuas entranhas
o mesmo triste vulcão 
de um amor de passagem
sem nome
que te surpreendeu
na bruma
dessa nunca extinta
solidão
que aos poucos te consome


Manadas (S. Jorge), 19 de Agosto de 2015
Carlos Vieira



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Respiro esta explosão de verdes...



Respiro
esta explosão de verdes
ponteados de rosa
dos aloendros 
e cardeais
agitando o mar ao fundo
poentes
outras flores de espuma 

na penumbra dos espinhos acerados 
reflexos de sal 
e peixes tímidos
o canto do melro
eloquente
alude ao insondável mistério
das ilhas

e nele sobrevive 
exangue
um familiar
desesperado coração 
da noite.

Manadas, S. Jorge, 3 de Agosto de 2015
Carlos Vieira

domingo, 2 de agosto de 2015

Pedra pomes



Fixo
o fogo do olhar 
na porosidade
do seu dorso erecto
entre o rumor
do banho
adivinho-lhe
o seu corpo que dança
antes da fragância 
que inibria
e o voo convexo
da sua mão fechada
na leveza 
da pedra pomes
por debaixo
da sua pele
ressona um vulcão
adormecido
que sonha 
no caos do coração
a limpidez
do futuro.

S. Jorge, 2 de Agosto de 2015
Carlos Vieira