sábado, 10 de janeiro de 2015

Pela estrada fora


Uma gota de orvalho
na vertical
desce pelo pára-brisas
a rola eleva-se
acima da cupúla
do pinheiro
e é devorada
pela neblina
um automobilista
carrega no acelerador
a fundo
ébrio de não ter meta
nem rumo
em excesso de velocidade
encontra um desvio
para o mundo
segue em linha recta
herói e mártir
da overdose do vazio
do detalhe
que faz a diferença
e se esfuma
na paisagem
dos lugares comuns.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Poema quase extinto



Aqui se vai apagando
a chama neste canto
de mim mesmo
onde me consumo
ninguém me chama
distraído do mundo
deixo passar a vida
e a minha vez
tenho de voltar
a tirar a senha
de ter a esperança
que nos legaram
os que agora
partem.

Lisboa, 7 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


“Departure” Paul Bond Fine Art

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O jovem monge...

O jovem monge
ouve o crepitar das folhas 
sabe os passos do mestre 
na alameda
nos seus dedos inquietos
recupera as palavras
caídas
interliga as letras
em flor
e as memórias
afastam-se com o mestre
que sublinha a distância
para que o jovem monge
entenda o espaço
e nos gestos reconheça
o silêncio e a dança
acompanhada
pela melodia
de um rio interior.

Lisboa, 6 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Modelo de Vermeer


Amarelo torrado
o cascol
enrolado ao pescoço
de porcelana
um casaco azul turquesa
até a meio das coxas
uma subtil alteza
de mulher do país do norte
pela firmeza
sobretudo pelo desdém
ao olhar e ao frio
uma camisola macia
no interior
de verde esmeralda
um corar ao de leve
a coroar
um metro e oitenta
um oportuno carrapito
de bailarina loira
tudo o resto era pura
ausência
suas mão brancas
de loiça holandesa
aquecem-se
à volta da chávena
de café
bem quente
a fumegar
acrescenta-lhe
um toque subliminar
uma etérea
inexistência
um eco de Vermeer
que vence o cinzento
o perfume matinal
um poema
que desperta
ao pequeno almoço
tudo o resto
é o sonho
do teu corpo nu
latino e inteiro.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Alvor ser



Nestas manhãs
de frio
sinto o arfar 
subtil
da tua respiração
uma doce
conspiração
que desfaz
a neve
ao acordar
por ti
deixo de estar
cego
devagar
ergues o pano
de neblina
e levo-te
pela minha mão
para que quebres
o gelo
com a pureza
das palavras
que à boca de cena
do mundo
proferes.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


Foto do holandês Paul Schneggenburger

domingo, 4 de janeiro de 2015

Amantes e "hackers

"
Silenciosamente
ela entrou e confundiu
o seu sistema central
onde se instalou
desconhecia
o seu lado negro
as contramedidas
da rede que teceu
após tantos ataques 
e contenção
foi fácil seguir-lhe
a sua pegada virtual
a inconfundível cintilação
de ter sido empregnada
do virús de saudade
e da sua solidão
ficou no entanto encadeado
na sideral constelação
e na dificuldade de ultrapassar
o racional bloqueio
da compatibilidade
em cada píxel do beijo
a emoção foi um desvio 
do que programou
e que acendeu incontrolável
no servidor do binário coração
um fóton de desvario
uma cibernética rebelião
de humanidade.


Lisboa, 4 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira








quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Parable of the Four-Poster


Because she wants to touch him,
she moves away.
Because she wants to talk to him,
she keeps silent.
Because she wants to kiss him,
she turns away
& kisses a man she does not want to kiss.

He watches
thinking she does not want him.
He listens
hearing her silence.
He turns away
thinking her distant
& kisses a girl he does not want to kiss.

They marry each other--
a four-way mistake.
He goes to bed with his wife
thinking of her.
She goes to bed with her husband
thinking of him.
--& all this in a real old-fashioned four-poster bed.

Do they live unhappily ever after?
Of course.
Do they undo their mistakes ever?
Never.
Who is the victim here?
Love is the victim.
Who is the villain?
Love that never dies.

© Erica Mann Jong