domingo, 21 de dezembro de 2014

Retrato de uma mulher só à porta do Inverno


O frio
tem para ti a grande vantagem
de nos tornar filósofos
invejas o poder dos metereologistas
que acompanharam o bailado
das deslocação entre as altas e as baixas pressões
da tua vida
procuras perceber a resignação
dos homens que amanham a terra
e lançam a semente
esses facilitadores diários do futuro
e daqueles que quando não tem mais nada
para dizer
falam do tempo
que enrijece os ossos
desencantados no eterno regresso
à sua infinita fragilidade
o vento assobia lá fora
na rua deserta
onde tudo se faz numa democracia
de dois sentidos
dormitas embalada
tu que gostavas de dormir
e agora só descansas
longa vigilía sem porquê
e entregas-te
a esse enorme vazio
de emoções
esperas para amanhã
aquilo que nunca se podia
ter feito hoje
espera-se por temperaturas mais elevadas
e pelos melhores dias que virão
com uma pequena manta de viagem
por cima das pernas
pensas
que caber-te-á
fazer um dia
o papel de pó e também de vento
de lamber as feridas
de fazer a música
nesse inusitado acordeão
feito das arestas das esquinas
do vibrar do alumínio das marquises
e do ressoar nas frinchas mal fechadas
das vidraças
um dia irás morder o pó das estrelas desfeitas
e que te foram prescritas
em forma de cápsulas para baixar a tensão
irás desvendar a noite em passo de fantasma
tornando-te brisa mansa na madrugada triste
agora sorris
enquanto aguardas sentada a ternura de um porvir
que torne um pouco mais luminosa
a tua tranquila solidão de estufa
onde sem querer
te aprisionaste a ti e ao tempo
onde nada acontece
nem frio
como se a morte
essa última quietude
estivesse chegado sem dares por nada
e sem te mexeres
lutas pela sobrevivência
respirar
é pois esse o teu último desafio.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


“A Room in Brooklyn”, 1932' de Eduardo Hopper "o pintor do silêncio"

Breve inventário



Este ano 
o artigo primeiro
foi o teu olhar
onde reencontrei 
aquela vertigem de assombração
que me deixava com falta de ar
esta pontada
que penetra no coração
devagar
depois o número dois 
foi aquela mensagem subliminar
de um planeta que pode desaparecer
sempre foste melodramática
desde que gravito à tua volta
em terceiro lugar
a constatação de que da leitura de sinais 
múltiplos e inquietantes
que há animais muito mais evoluídos
que muita gente
e de quem gostas mais
o que não é nada surpreendente
anoto numa outra rubrica
que este ano
cresceram o número de pobres 
e daqueles que não tem 
nunca tiveram nada para dar
digladiam-se as estatísticas
umas rezam que há mais nas esquinas
e outras nos cruzamentos
este ano têm menos para receber
pois muitos estão mais pobres
pelo menos agora saímos dessa pose soberba
da misericórdia do teu olhar
e sabemos melhor o que é isso
de não ter um mínimo de subsistência
um método pedagógico mais ortodoxo
num outro item dei a devida nota
de que há uma curiosa unanimidade
no perigoso avaliar dos deslumbramentos
que amenizam e nomeiam de farta a realidade
e enaltecem a pobreza da fição
apraz-me ainda registar
que foste de novo fazer voluntariado
sentes-te mais leve quando 
vais ajudar os outros
olho agora para este documento 
que faz prova da tua vida 
coberto de carimbos de tinta permanente
azul e preta
passaporte para uma nova fronteira
da nossa existência
e que nada vale 
este sudário encharcado do dia a dia
e de imaginário
continuam tristezas e cansaços 
tudo se apaga cá na terra
os desmandos e a enorme incapacidade
de sermos racionais
quem te manda a ti sapateiro
gastar o que não tens
tu tinhas avizado 
sempre foste muito mais prudente
e a indesmentível desgraça de tantos
vista à lupa através do crédito mal parado
apontado que ficou e sublinhado
mudas de conversa
mostras-me aquela estrela do mar
de quem devia acreditar
na filha que a foi buscar ao fundo
de si própria para te dar
continuas com essa colecção de coisas
que só para ti tem valor
por fim 
para memória futura
apontas mais uma cicatriz
que um objecto doméstico te deixou
e neste inventário nenhuma referência
à tua contundente competência em ferir 
aqueles que te amam
e tu ficares incólume
tu nunca te vais dar conta
tu és analfabeta
nesse jogo mortal 
do deve e do haver.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Amar sai caro!

Amar sai caro

O custo de vida
a aumentar
o amor não aguenta
deixou
de ser prioritário
é descartável
saiu da agenda
é um detalhe
é circunstancial
podemos amar
se não temos
mais nada 
estejamos atentos
é necessário
mais planeamento familiar
que fazer em primeiro lugar
devemos pagar
as nossas divídas
cumprir as nossa obrigações
fazer o diagnóstico
não nos podemos
dar a esse luxo
de amar
despudoradamente
por qualquer motivo
qualquer lugar
e a carreira 
o desempenho
e as regras a segurança
o equilíbrio e o futuro
temos de estabelecer
prioridades na vida
este não é tempo
para sonhar
temos de ser
pragmáticos
estar com os olhos
bem abertos
pé em terra firme
sensatez
quanto custa
quanto nos rende
amar sai caro
está pela hora da morte
sempre vezes dois
é tempo de sobreviver
sejam românticos
depois
amar é para quem
não tem mais nada
para quem pode
para fazer
para os desgovernados
para os loucos
quando muito 
façam alguma poesia
sem exageros
perde-se algum tempo
mas sai mais barato.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



sábado, 13 de dezembro de 2014

Dias de bruma III



Levanta-se agora
o nevoeiro
sob a cidade
deixou um manto
de silêncio
as palavras
saiem da boca
de vultos
embrulhadas
de vapor
como se fossem
poemas
de algodão
acompanha-as
o subtil crepitar
em que se desfaz
a espuma
e a brisa
imperceptível
do bater de asas
da pomba 
da paz.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



Dias de bruma II



os candeeiros
são flores bruxuleantes
nas ruas da cidade enevoada
fecho os olhos e sonho
o estame incandescente
do teu beijo a incendiar 
a seca e gretada 
solidão dos meus lábios


Lisboa, 13 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Dias de bruma I



o nevoeiro 
abate-se sobre a cidade
a luz diáfana
que resiste ao fundo 
do túnel da rua
adquire os contornos
do teu rosto
vivo nesta cegueira
de te ver
em todo o lado

Lisboa, 13 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Cancioneiro cínico ou baixo relevo para este Natal - V - A pressa de chegar e de partir



o tráfego prossegue
aos repelões
com um fingimento
da pressa
de quem
não vai a nenhum lado
nas suas inesperadas
pulsões
nestas alturas
é de bom tom
enaltecer
os cínicos do planeamento
tu ficas por aqui
nesse êxtase
nesta estupefação
perante a voracidade
do caos
e o desemprego
de longa duração

alguns aproveitam para fazer amor à hora de ponta

Lisboa, 12 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira