terça-feira, 14 de outubro de 2014

Clausura



e nua
e sem pecado
um ser frugal
perante o absurdo
e a intempérie
sem uma palavra
nem o mais pequeno gesto
apenas
um silêncio vegetal
à flor da pele
pálida
e aquela falta de ar
e de história
elementos comuns
que a acompanharam
em toda a sua vida
agora
está nas suas mãos
no seu instinto animal
e naquele seu olhar cego
de sofreguidão
e de pobreza
tudo o que ainda lhe resta
já que deixou
no prego
o coração ignaro.

Lisboa, 14 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



"Seclusion" de Charles Wilmott

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

De fajã em fajã I



A correr 
fomos de uma fajã a outra
aos saltos pelo "calhau"
entre salpicos de espuma
um pé nas grandes
bolas de pedra
e o outro na Terra
nas narinas a maresia
em breve chegámos
ao céu
eu e o João Paulo.

Lisboa, 12 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Poça da Feijão do Ouvidor

Interlúdio com uma sereia


Sinto 

o desafio da presença 

do seu olhar

cristalino o fio

do seu canto em surdina

a incendiar

os lugares mais inacessíveis

da carne.



Teu olhar redondo 

concha esquecida

como um lago 

onde sonhava refrescar

os meus pés 

de onde se erguem as colunas

de alabastro

das tuas pernas

para adornarem

uma tarde de um Verão.




Mergulho

espero por ti

volto à superfície

sereia

que desapareces

do meu mundo

num pestanejar.



E agora

batem em mim

as vagas da ausência

e fica-me a corroer

o peito 

o teu coração de sal 

procuro-te

pelo periscópio 

e somente encontro

um crepúsculo de frio.



Desvaneces-te

no submarino silêncio 

volto à condição

de náufrago

que foi morrer na praia

de uma amor

que existiu apenas

naquelas subtilezas do olhar 

que se cruza agora

com o teu lugar do vazio

preenchido por o eco 

de um canto

que no acaso coincidiu

com a tua sede.



Lisboa, 13 de Outubro de 2014


Carlos Vieira

domingo, 12 de outubro de 2014

Jardim nocturno IV


Abre-se
uma porta
de tasca
na meia-noite
como se fosse
uma navalha
e o aroma
a perfume barato
cruzam a rua
e o pensamento
muito bem conservado
em álcool
e o fado vadio
é maltratado
numa voz rouca
de Tom Waits
sem cor
que treme
que se esforça
ninguém sabe
se de ressaca
se de frio
era no entanto
uma porta aberta
uma mão estendida
- Quer "flo". Quer "flo"!
Se eu quisesse!
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

"Red rose in the dark night"

Jardim nocturno III


Em noites
de luar de sargeta
sobre o alcatrão
o movimento
das bielas
e êmbolas
no seu movimento
sub-reptício
germinam
nas manchas
de óleo derramado
um arco-irís
de néons e semáforos
e palavrões.
De súbito,
a mais profunda
escuridão
o estrépito metálico
e o chiar do travão
um cheiro
a borracha e a férodo
o ruído bruxuleante
dos pirilampos
e do sangue
de encontro às paredes
do medo.
Cumpre-se agora
meticulosamente
o protocolo
nas Urgências
depois da vida
nada mais é urgente.
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

www zastavki com lights of the city at night

Jardim nocturno II


Notívagos
de cigarros
pendentes
no canto dos lábios
dos Bogart's
decadentes
que divagam
pelos palcos
de outro mundo
e respondem
com sorriso
distante
ao desconforto
acústico
de alumínio
na triste
solidão
das "marquises"
perante
um amor
que não encontram
nem existe.
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

Valery Hugott
Foto tirada em 12 de setembro de 2014
Sorbonne, Paris,

Jardim nocturno I


O jardim nocturno
de redomas
de luz
onde insectos
voam
e para chamar
atenção
cometem
suicídio
nos estames
incandescentes
das lâmpadas.
Lisboa, 11 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


O candeeiro do Vasco