sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Embriagamento





Foi pelo intervalo
da chuva
o vento frio
costurava
nas esquinas
no fim
ao regressar
costuma
vir aos saltos
e o eco
das suas gargalhadas
estridentes
pode-se ouvir
na abóbada
riem
rimam
com as filigranas
pendentes
de água
que escorre
na copa
das árvores
e sucumbem
no néon
e na esquecida
eloquência
dos candeeiros
ou pode trocar-nos
as voltas
e rumar
pelo caminho
das pedras
no precário
exercício
de equilíbrio
etílico
dos regressos
aos magníficos
perfumes
que despertam
para as histórias
encantadas
ébrio
das primeiras chuvas.

Lisboa, 12 de Setembro de 2014
Carlos Vieira










'Matinee d'ivresse' (Morning of Ecstacy), de Tino Rodriguez, inspirado por Arthur Rimbaud

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Memórias de Afrodite



Parece que te estou a ver
na tua frescura erecta
surpreendente na sua entrega 
tempestuosa e vertical
depois mesmo quando
te descalçavas
sobre a terra negra
ias articulando
o teu gesto pausado
e natural
numa desenvoltura elegante
no meio da horta
como quem vai acalmar o mar
e ascender aos céus
na curva da tua cintura 
sobre os canteiros
de plantas aromáticas
adivinha-se a distância tensa
e ansiosa dos animais
um aroma que se confundia
com a resina dos pinhais
e para as aves da manhã 
tu eras a hora marcada
para regressarem
de novo à vida
podiam rever-te a sorrir
enquanto o ramo de hortelã
te aflorava das mãos 
tão lúcidas
e cheias de tudo e de nada
acesas 
de uma brancura insólita
momento de sofreguidão
em que de si
se esquecia
e se te vislumbrava
a vigiar a ternura das vagens
e a admirar os frutos
ou se olhavas para o céu
era porque 
no teu silêncio
germinava mansa sede
nos campos
em adoração
levantava-se 
o murmúrio do desejo
e o rumor de uma oração à chuva.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



 “Aphrodite” by William-Adolphe Bouguereau

Suores frios


Noites húmidas
deste suor 
sem explicação
ou pingo de amor
de emoção 
de roupa a secar
no corpo
que sem razão 
se consome
e se desfaz em rio
na febre
delta do vazio.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Havia em ti...

havia em ti
um pássaro livre
foi de tanto te amar
que pouco a pouco
te perdi
e o pássaro
de tanto ouvir
meu coração bater
ficou louco
desafinou seu canto

Lisboa, 10 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


                                                       Pintura de autor desconhecido

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Outra vez o rio que passa na minha terra II



Naquele tempo
eu ia aprender a nadar
para o açude
o meu pai conduzia
a água no pomar
os motores de rega
ganiam como cães
na margem direita
e as cigarras
na outra margem
enquanto eu lutava 
contra a corrente
e em profundidade
descobria 
todos os estilos
quanto os silenciosos
peixes estavam 
mais perto
da eternidade.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

O amante ferroviário



Dois comboios 
passam tão rápidos
mecanicamente 
um pelo outro
e por mim
é tão perfeito
milimétrico
o seu desencontro
ou então conhecem-se 
de ouvido
da desolação
das curvas
e das planícies
tão cegos
nas idas e voltas
do mesmo caminho.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Poema do amor com pés e sem cabeça



Beijar
os teu pés
teu maior desejo
nos meus lábios
o sabor do segredo
de cada um dos teus passos
fantasia deslumbrante
de ir pela tua vida fora
levantar-te
onde tu caíste
tu és a minha nuvem
eu nunca tive os pés no chão.

Lisboa, 8 de Setembro de 2014

Carlos Vieira