terça-feira, 3 de junho de 2014

Segredos



Não digo nada
nem quero dizer
sou um poço
sem fundo
que só quer
dar água fresca
nem uma palavra
me irão arrancar
sei o que é 
guardar segredo
só por cima 
do meu cadáver
mas agora 
que me esqueci
por onde vim
secretamente
o que me trouxe
até aqui
incessantemente
busco a chave 
que transforme
o segredo
o testemunho
que dê sentido
à palavra dada
que era para
ser grito de combate
senha de acesso
à construção
da memória
à ingrata missão
de dar vida
secreta e interior
e fazer pulsar 
o sangue que corre
que dá respiração 
à melodia
e aos poemas
e que dando-lhe
também lhes tira
uma estranha 
forma de vida.

Lisboa, 3 de Junho de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Nocturno Silêncio



Uma após a outra
as palavras 
vão sossobrando
os objectos 
repousam
exaustos
sobre as mesas
e o mármore
é a hora
em que se acende
a velada nudez
dos corpos
as roupas 
são arquipélagos
semeadas 
pelo chão
dão testemunho
contundente
de sofreguidão 
respira-se
violentamente
agora
as palavras
são pássaros cegos
a baterem na vidraça
já não valem
nada.

Lisboa, 1 de Junho de 2014


Carlos Vieira

A noite caiu...

a noite caiu
e eu fui atrás
espalhei-me 
ao comprido
as estrelas que vi
não eram minhas
eram da noite
que caiu

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

domingo, 1 de junho de 2014

pão-de-ló



subitamente
o perfume do pão-de-ló
atravessa o corredor
não resisto
a esperar
que do vórtice
das tuas mãos
devore
esse poema 
familiar

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Familiar IV



Oiço o marulhar
do tráfego
no eixo Norte-Sul
através desse mecânico
vociferar
e via essa coordenada
do dia-a-dia
tendo a me encontrar.

O meu plano
é meter vidros duplos
de forma a não perder
esses murmúrios 
desses outros objectos
e afectos acústicos 
da plataforma familiar.

Aqui estou
feito compositor
a distinguir
entre o segredo e o ruído
interior
tangendo
a perpendicular
do corpo
ou direito ao coração.

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Hombre

Hombre soy ya vencido,
vástago del horror
y espanto de la nada.
Hombre soy, ya cadáver
herido por la ausencia,
la frustración, la culpa;
por el viejo sentir
de ser distinto y menos
que el resto de los vivos.
Mitad hombre y demonio,
me odio y me castigo
por ser solo una ruina,
este hombre triste y solo
lleno de espanto y miedo.
Hombre soy: hombre he sido.
Hombre fui quizá un día.
Hoy no me reconozco.


IÑIGO LINAJE
Apuntes de una vida
(2004)





Homem sou vencido já,
filho do horror
e espanto do nada.
Homem sou, cadáver
ferido pela ausência,
pela culpa e frustração;
pelo velho sentimento
de ser diferente e menos
do que os outros viventes.
Meio homem e meio demónio,
odeio-me e castigo-me
por ser só uma ruína,
este homem triste e só,
cheio de espanto e de medo.
Homem sou, homem fui.
Homem fui talvez um dia,
hoje não me reconheço.

(Trad. A.M.)

a outra cidade



Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e
impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre
cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de
braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras,
paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados,
perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas
estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não
ditas.



giánnis ritsos

tradução de custódio magueijo