segunda-feira, 2 de junho de 2014

Nocturno Silêncio



Uma após a outra
as palavras 
vão sossobrando
os objectos 
repousam
exaustos
sobre as mesas
e o mármore
é a hora
em que se acende
a velada nudez
dos corpos
as roupas 
são arquipélagos
semeadas 
pelo chão
dão testemunho
contundente
de sofreguidão 
respira-se
violentamente
agora
as palavras
são pássaros cegos
a baterem na vidraça
já não valem
nada.

Lisboa, 1 de Junho de 2014


Carlos Vieira

A noite caiu...

a noite caiu
e eu fui atrás
espalhei-me 
ao comprido
as estrelas que vi
não eram minhas
eram da noite
que caiu

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

domingo, 1 de junho de 2014

pão-de-ló



subitamente
o perfume do pão-de-ló
atravessa o corredor
não resisto
a esperar
que do vórtice
das tuas mãos
devore
esse poema 
familiar

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Familiar IV



Oiço o marulhar
do tráfego
no eixo Norte-Sul
através desse mecânico
vociferar
e via essa coordenada
do dia-a-dia
tendo a me encontrar.

O meu plano
é meter vidros duplos
de forma a não perder
esses murmúrios 
desses outros objectos
e afectos acústicos 
da plataforma familiar.

Aqui estou
feito compositor
a distinguir
entre o segredo e o ruído
interior
tangendo
a perpendicular
do corpo
ou direito ao coração.

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Hombre

Hombre soy ya vencido,
vástago del horror
y espanto de la nada.
Hombre soy, ya cadáver
herido por la ausencia,
la frustración, la culpa;
por el viejo sentir
de ser distinto y menos
que el resto de los vivos.
Mitad hombre y demonio,
me odio y me castigo
por ser solo una ruina,
este hombre triste y solo
lleno de espanto y miedo.
Hombre soy: hombre he sido.
Hombre fui quizá un día.
Hoy no me reconozco.


IÑIGO LINAJE
Apuntes de una vida
(2004)





Homem sou vencido já,
filho do horror
e espanto do nada.
Homem sou, cadáver
ferido pela ausência,
pela culpa e frustração;
pelo velho sentimento
de ser diferente e menos
do que os outros viventes.
Meio homem e meio demónio,
odeio-me e castigo-me
por ser só uma ruína,
este homem triste e só,
cheio de espanto e de medo.
Homem sou, homem fui.
Homem fui talvez um dia,
hoje não me reconheço.

(Trad. A.M.)

a outra cidade



Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e
impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre
cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de
braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras,
paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados,
perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas
estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não
ditas.



giánnis ritsos

tradução de custódio magueijo


Se tu és a égua de âmbar...

Se tu és a égua de âmbar
eu sou o caminho de sangue
Se tu és o primeiro nevão
eu sou quem acende a fogueira da madrugada
Se tu és a torre da noite
eu sou o cravo ardendo em tua fronte
Se tu és a maré matutina
eu sou o grito do primeiro pássaro
Se tu és a cesta de laranjas
eu sou o punhal de sol
Se tu és o altar de pedra
eu sou a mão sacrílega
Se tu és a terra deitada
eu sou a cana verde
Se tu és o salto do vento
eu sou o fogo oculto
Se tu és a boca da água
eu sou a boca do musgo
Se tu és o bosque das nuvens
eu sou o machado que as corta
Se tu és a cidade profunda
eu sou a chuva da consagração
Se tu és a montanha amarela
eu sou os braços vermelhos do líquen
Se tu és o sol que se levanta
eu sou o caminho de sangue

Octavio Paz, in Salamandra