domingo, 11 de maio de 2014

As palavras cedem...

as palavras cedem
ao silêncio
e este à sede

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

No céu...

no céu
uma única nuvem
a ave de rapina

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

O peregrino segue...

o peregrino
segue 
pelo caminho de ferro
desactivado
pousa o ouvido
no carril enferrujado
e ouve-se 
a sua alma
uma locomotiva
a latejar

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Mãe terra


Espreito 
o colo eterno 
do enternecer
no fecundo peito
de um ser materno
na usura do entardecer
do mundo.

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Uma mulher na paragem do tempo


Vi-te
ontem,
porém tu
não me viste,
estavas
na paragem
do autocarro,
lias um livro.

Ali estavas,
serena,
esquecida
de mim,
página
virada
da tua vida.

Tive para parar,
te oferecer
boleia
mas não sabia
para onde ías,
nem em que capítulo
ficámos.

Foi melhor
assim
tu arrumada
a um canto,
livro que amei ler
que teve
o seu tempo
o seu encanto.

E agora
eras mais
uma miragem,
apenas
um estremecimento,
na paragem
do autocarro.

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

                                                 "Woman at the bus stop" Jörg Zenker

Furto por descuido no decurso de um sonho

Um café na esquina
apenas 
um chapéu de sol
aberto na esplanada
sobre as tuas pernas 
longas e cruzadas
um cigarro aflorava-te
entre os dedos
sobrevoou-te
um pensamento
sorrias para ti mesmo
era perceptível
uma luminosidade
húmida no olhar
e a discreta elegância
do vestido creme
a cabeça levemente
deitada para trás
infelizmente
foi de ângulo
insuficiente
para atentar
no rapaz de t-shirt
e calças de ganga
que passou
subrepticiamente
junto a ela
e se apoderou
da sua carteira
e foge muito depressa 
do teu sonho
antes que dês
por isso
tu que até tinhas 
reparado nele
no seu olhar penetrante
na atração
do seu ar rebelde
embora pouco cuidado
agora o teu problema 
deixou de ser 
a solidão
é o telemóvel
as chaves
os documentos
cancelar o cartão 
de crédito
e como vais pagar
o café
essas distrações
coisas da vida
e do amor 
pagam-se caro
e agora
tem de ficar 
para mais tarde.

Lisboa, 10 de Maio de 2014

Carlos Vieira

O peregrino



I

Descanso
depois do medo
e antes da coragem
sento-me no penedo
a meio da encosta
da ilusão e da viagem
o meu olhar
divide o teritório do vale
em paz com o falcão.

II

Prossigo
a caminhada
em direção
ao desfiladeiro
a única cilada
que receio
tem a raiz
na imaginação
o meu maior
inimigo
dorme comigo.

III

Agora
este rio
me acompanha
conversamos
seguem-nos
os peixes
canta o rouxinol
e reflexos
de salgueiro
ele sabe para onde vai
eu não sei
para onde vou
e a todos levo
comigo.

IV

Vou ficando
mais disponível
para os aromas
mais subtis
e para as aves
mais breves
para a emoção
dos atalhos
poderei chamar
peregrinação
a é esta geometria
mínima
de folhas
e de sombras.

V

Doem-me os pés
o corpo todo
tenho sono
e a fome
assalta-me
em silêncio
venci o cume
a chuva e o vento
comi o pó
e o desafio
é para lá
do momento
é ser só
e ser o caminho
ao mesmo tempo
cair adormecido
embalado
pelo conhecimento.

Lisboa, 11 de Maio de 2014
Carlos Vieira

"The Pilgrim above Mist" de Caspar David Friedrich (1744-1840)