segunda-feira, 28 de abril de 2014

problemas de graduação

ninguém
reparou na sua íris
apenas o oftalmologista
a conhece de cor e salteado
quem me dera poder espreitar
para dentro de si e assim perceber
afinal qual é o seu problema principal
ver-me só ao perto ou ver-me só ao longe?
poderei vê-la a olho nu e ela à vista desarmada?

Lisboa, 28 de Abril de 2014
Carlos Vieira


Foi apanhar o feno...

foi apanhar o feno
que cresceu
na margem da levada
desfaleceu
ninguém sabe se do sonho
que ceifava
se foi da imagem que bebeu
do seu amor
na água fresca que passava

Lisboa, 28 de Abril de 2014
Carlos Vieira



domingo, 27 de abril de 2014

Sento-me...


sento-me 
no cais
entre colunas
o tejo e a luz
vêem à vez 
com vagar
lavar-me 
os pés
e levar-me
ao fado 
esse canto 
de sereia de rio 
de lisboa

Lisboa, 27 de Abril de 2014
Carlos Vieira

memória têxtil



essa indústria 
materna e antiga
feita de nós contados
e de número de agulhas
de meadas e de serões
do teu olhar a tricotar
invernos e verões
e nos prolongamentos
dos fios de lã encontrar
igualmente macias
tuas mãos por momentos
desocupadas de tecer 
a ternura

Lisboa, 27 de Abril de 2014
Carlos Vieira





Daguerreótipo

Primeiro Daguerreótipo que se tem conhecimento, feito pelo seu inventor, Louis Daguerre, em 1837


daguerreótipo

vives nessa câmara escura
onde a abertura do diafragma
te é sonegada
e a gradação dos cinzas
é frequentemente 
adulterada
por excessos de coração
e alterações de luz 

Lisboa, 27 de Abril de 2014
Carlos Vieira




Soneto do amor e da morte

VASCO GRAÇA MOURA (1942-2014)

Soneto do amor e da morte


Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar,
sempre a doer, sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

sábado, 26 de abril de 2014

Boca do Inferno


de novo
esta saga do dentista
de boca aberta
das reprimendas
de ter que passar melhor
o fio dental
da saliva a acumular-se 
da broca a perfurar
das cáries
e eu já de todas 
as cores
de situações
delicadas
daquelas mãos
delicadas
do já não há 
nada a fazer
e onde está 
o raio da esperança
do deixaram aí
umas raízes
e dos abscessos
e vai uma ponte
ou um implante
eu que já 
não tenho dentes
como dantes
agora
pode gargarejar
do não é preciso 
anestesia
se doer 
braço no ar
de novo
este velho ritual
de boca aberta
sem espanto
e agora sem incisivo
minha boca
do Inferno

Lisboa, 26 de Abril de 2014
Carlos Vieira