sábado, 22 de março de 2014

Região demarcada da infância I



De vez 
em quando 
assalta-me 
a memória
de boné
abraçado
às cepas
do meu pai
de pé
na hábil
manobra
de criar
círculos
de vergar
as vides
atando-as
as obrigar
a uma vida
vertical.

Lisboa, 22 de Março de 2014
Carlos Vieira



Pesopluma

Pluma 
que cai da ave 
a dançar 
aos teus pés
alados
pequena nuvem 
dádiva 
dos céus
pena 
dos sonhos
em que te elevas
depois
atacas no voo 
picado 
da escrita
todas as dores
alegria 
e tristeza
que tendo 
o teu peso
tem a leveza 
do mundo.

Lisboa, 22 de Março de 2014
Carlos Vieira




sexta-feira, 21 de março de 2014

O truco...

O truco era do turco que tinha um truque um pequerno troque trocava-nos as revoltas e prunha os olhos tortos prontos falamos do acrobata que magicava pelos circus possuído de uma tremenda agilidade e dramática clarividência.


Lisboa, 21 de Março de 2014
Carlos Vieira

Frágil...

Frágil
é a ânfora
ignora o poder
da água fresca
e dos teus lábios 
sôfregos.

Lisboa, 21 de Março de 2014


Carlos Vieira

quinta-feira, 20 de março de 2014

O regresso à casa

Um silêncio 
para mim desconhecido
apodera-se dos objetos da cozinha
tu estás ausente 
e os teus sabores também
descrevo de cor 
uma lista de ingredientes
e pouco sal
as mobílias de madeira 
envernizada
adquiriram um brilho pálido das casas
abandonadas 
ainda ali poderia ainda reeencontrar 
para lá da poalha
o deslizar da volúpia dos teus dedos
por acaso o meu olhar dirige-se
para o lugar 
onde não deverias faltar
e reconheço
a indestrutível dimensão que davas
aos pequenos espaços
as cortinas deixam passar 
agora como dantes
a luz do crepúsculo
que já não te encontra desnuda
perante o meu desejo
vem acompanhada do ruído do tráfego
esse ensurdecedor rumor do sangue venoso
que corre nas ruas da grande cidade
que tu sobrevoavas
com teu olhar de adormecer a dor
e de arrasar a solidão
e fazer tremer as esquinas 
e de fazer sorrir as superfícies espelhadas
tento-te surpreender 
nos teus inconfundíveis
gestos domésticos em que te reconstituo
mas reencontro apenas o ocre do vazio
o percurso de retorno do teu eco 
no aroma familiar já distante 
dos teus beijos cálidos
a pairar apenas na única memória
que ainda torna mais afogueada a respiração
há cabides a mais no guarda-roupa
e lembro-me da bruma volúvel dos tecidos
segunda pele do teu corpo
onde rasgava noites e madrugadas
percorro as divisões 
onde encontro pedaços de ti
um gancho do cabelo do princípio dos tempos
dos nossos tempos
o rubor da cumplicidade das acácias a acenarem 
na janela poente da sala
as tuas mãos em estrela 
no cobre das torneiras em flor do lavatório
em que te observava
ávido das tuas mãos em concha
o recanto onde me cercaste
e me encostaste à parede
e fizemos amor pela última vez
derrubando todos os muros
a casa em silêncio
permanece para que não se quebre
a serenidade do teu rosto
no dia em que partiste
e as palavras que dos teus lábios
saíram mansamente 
falando de uma viagem 
que eu nunca suspeitei
não ter regresso
porque não tinha fim.

Lisboa, 20 de Março de 2014
Carlos Vieira


A relatividade do tempo



Espera sentado
o médico está em atraso
para o "caranguejo"
nem atrasa nem adianta
todos morreremos
um dia e somos uns
para os outros
na compreensão
da morte
mais tarde ou mais 
cedo vamos morrer
não há grande 
coisa a fazer
as doenças
incuráveis
podem esperar!

Lisboa, 19 de Março de 2014


Carlos Vieira

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mais um assalto



Alto
isto é um assalto
depois abri a gaveta
dei-lhe todo o apuro do dia
chamaram-me nomes que não 
posso aqui reproduzir porque se
encontram aqui senhoras e eu olhava 
ora para os olhos da espingarda de canos
serrados ora para os olhos de sanguinário
do bandido interlocutor que se viam como bichos 
nervosos por debaixo do passa-montanhas a seguir 
pediu-me o segredo do cofre e eu disse-lhe em segredo 
que não sabia foi então que me deram uma coronhada 
na cabeça como se vê nos filmes ninguém me mandou
armar-me em herói e desde aí não me lembro de mais nada
nem sinais particulares só uma poça de sangue e o couro cabeludo
empastado um assalto é um assalto e eu fui apenas mais uma vítima
destes mundo cada vez mais violento e para o que me deu reagir calmamente
em forma de verso branco a três esqueléticos e desgraçados toxicodependentes
que conseguiram o magro pecúlio de setenta e cinco euros e na sua infinita misericórdia
me pouparam a vida de marçano.

Lisboa, 19 de Março de 2014
Carlos Vieira