domingo, 23 de março de 2014

Região demarcada da infância III



nem me lembro
da casta
só do oiro dos bagos
nos seus lábios
depois ficaram
embriagados
cercados 
pelos aromas
e sabores
que exalavam
e os consumiam 
na fecunda
convergência
do desejo
nos seus corpos
firmes e nus

(eu observava-os meio a medo meio escandalizado por detrás de uma parreira)


Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

Região demarcada da infância II



Ias pela madrugada, pelos trilhos do vinhedo, olhavas para as videiras, a todas conhecias, desde a raíz como a ponta dos teus dedos, minuciosamente, com a atenção agrícola que te corria, desde pequeno nas veias.
Possuías um olho clínico, ancestral, de perceber o início do oídio, do mildío, ainda que fosse na página anterior da folha, o alastrar da podridão no bago, o começo mínimo de algodão do fungo, a imperceptível mudança de coloração na folha escondida, depois das últimas chuvas.
A seguir tu, grande feiticeiro, recorrias à cal, aos sulfatos e ao enxofre, compunhas as curas e passeavas feito Deus providencial, no meio de uma nuvem, pulverizando as pragas e parasitas que lhe invadiram "as vinhas da ira" e do amor, da sua vida.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

sábado, 22 de março de 2014

Região demarcada da infância I



De vez 
em quando 
assalta-me 
a memória
de boné
abraçado
às cepas
do meu pai
de pé
na hábil
manobra
de criar
círculos
de vergar
as vides
atando-as
as obrigar
a uma vida
vertical.

Lisboa, 22 de Março de 2014
Carlos Vieira



Pesopluma

Pluma 
que cai da ave 
a dançar 
aos teus pés
alados
pequena nuvem 
dádiva 
dos céus
pena 
dos sonhos
em que te elevas
depois
atacas no voo 
picado 
da escrita
todas as dores
alegria 
e tristeza
que tendo 
o teu peso
tem a leveza 
do mundo.

Lisboa, 22 de Março de 2014
Carlos Vieira




sexta-feira, 21 de março de 2014

O truco...

O truco era do turco que tinha um truque um pequerno troque trocava-nos as revoltas e prunha os olhos tortos prontos falamos do acrobata que magicava pelos circus possuído de uma tremenda agilidade e dramática clarividência.


Lisboa, 21 de Março de 2014
Carlos Vieira

Frágil...

Frágil
é a ânfora
ignora o poder
da água fresca
e dos teus lábios 
sôfregos.

Lisboa, 21 de Março de 2014


Carlos Vieira

quinta-feira, 20 de março de 2014

O regresso à casa

Um silêncio 
para mim desconhecido
apodera-se dos objetos da cozinha
tu estás ausente 
e os teus sabores também
descrevo de cor 
uma lista de ingredientes
e pouco sal
as mobílias de madeira 
envernizada
adquiriram um brilho pálido das casas
abandonadas 
ainda ali poderia ainda reeencontrar 
para lá da poalha
o deslizar da volúpia dos teus dedos
por acaso o meu olhar dirige-se
para o lugar 
onde não deverias faltar
e reconheço
a indestrutível dimensão que davas
aos pequenos espaços
as cortinas deixam passar 
agora como dantes
a luz do crepúsculo
que já não te encontra desnuda
perante o meu desejo
vem acompanhada do ruído do tráfego
esse ensurdecedor rumor do sangue venoso
que corre nas ruas da grande cidade
que tu sobrevoavas
com teu olhar de adormecer a dor
e de arrasar a solidão
e fazer tremer as esquinas 
e de fazer sorrir as superfícies espelhadas
tento-te surpreender 
nos teus inconfundíveis
gestos domésticos em que te reconstituo
mas reencontro apenas o ocre do vazio
o percurso de retorno do teu eco 
no aroma familiar já distante 
dos teus beijos cálidos
a pairar apenas na única memória
que ainda torna mais afogueada a respiração
há cabides a mais no guarda-roupa
e lembro-me da bruma volúvel dos tecidos
segunda pele do teu corpo
onde rasgava noites e madrugadas
percorro as divisões 
onde encontro pedaços de ti
um gancho do cabelo do princípio dos tempos
dos nossos tempos
o rubor da cumplicidade das acácias a acenarem 
na janela poente da sala
as tuas mãos em estrela 
no cobre das torneiras em flor do lavatório
em que te observava
ávido das tuas mãos em concha
o recanto onde me cercaste
e me encostaste à parede
e fizemos amor pela última vez
derrubando todos os muros
a casa em silêncio
permanece para que não se quebre
a serenidade do teu rosto
no dia em que partiste
e as palavras que dos teus lábios
saíram mansamente 
falando de uma viagem 
que eu nunca suspeitei
não ter regresso
porque não tinha fim.

Lisboa, 20 de Março de 2014
Carlos Vieira