segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Uma lontra ao sol

Uma lontra ao sol
sacode-se na muralha do açude
salpica-me o poema

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


Yves Montand - Le temps des cerises

Bicho de más contas

Bicho de más contas

Ía muito bem
cá com as minhas contas
pelo carreiro
e encontro
um bicho-de-conta
que de pronto
se enrolou
sem se dar conta
que afinal
era eu caminhante
habitual
a atravessar
o carreiro
que à hora de ponta
não é local
para passeio
lá estava o bicho
naqueles
propósitos
de defesa tonta
para quem
tudo o que mexe
são inimigos
e pelo caminho
encontra
perigos
sem ter
em devida conta
ou que não oferecem
verdadeiro
perigo
passando o tempo
a enrolar
a sua vida
e eu a desembrulhar
a minha
fazendo contas.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


Os inacreditáveis filhos da sombra



Estamos no fim do Inverno
a alma precisa desta luz suave
que o sol agora nos traz
como se fosse o filho pródigo
que regressa de mansinho
todos estamos fartos
desta filha putice hábil
de quem negoceia
no ar condicionado
a luz e a sombra
ou nos confunde no jogo
dúctil das estações.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira


                                                        Sol de Inverno de Irina Belaye

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Mulher brisa



Sóbria
quase nua
quase nada

silêncio
tanto silêncio

som breve
quase voz
quase pó
que se levanta

perfume
só o teu perfume

voo sereno
quase ave
quase flor
que se abre
que se confessa

treme
a tua mão delicada
treme
a tua pele
fecham-se
os teus olhos
tremo

como vou
poder 
possuir-te
se está ausente
como posso viver
sem metade de ti.


Lisboa, 16 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira




Sentou-se...



Sentou-se
à beira do poço
redondo
tão serena.
Olhou-se
ferida
de uma súbita 
sede.
Embriagada
pelo vórtice
da lua
desvaneceu-se.
Tão serena
como regressara
do poço da morte.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira




Se for possível...

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


Hilda Hilst