domingo, 16 de fevereiro de 2014

Amor na idade da pedra


I

O seu coração 
é uma ave 
triste
trespassada
pelo silício
da memória 
que persiste
em te amar.

II

Morre
devagar
corre
um sonho 
rupestre 
e de sílex
não desiste
luz etérea 
sobrevive
exangue
por amar-te
pigmentos
de Altamira
de escrita
visceral.

III

No silêncio 
e na angústia
do seu peito
o equívoco
perdura 
perene 
a adoração
por empedernido 
coração.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


sábado, 15 de fevereiro de 2014

Passou depressa...

Passou depressa
o nosso tempo sem palavras, quando só
o tacto contava

E sabíamos ainda
como o amor pode ser grande
quando ninguém é de
ninguém


Hans-Ulrich Treichel, Como Se Fosse a Minha Vida

Ducks At Peace


I'd like to take my family to the lake,
Father said, so they could see how well
the animal & fish kingdoms get along.
You hardly ever see ducks fighting.
If they do, it's done in private.
We should follow their example,
& not air our dirty laundry in public.
That was what I told your mother
at the restaurant, that she should
save her complaints for when we
get home. She said she had already
complained there. She was hoping
she'd get better results if she changed locations.

Hal Sirowitz

Nuit de neige




La grande plaine est blanche, immobile et sans voix.
Pas un bruit, pas un son ; toute vie est éteinte.
Mais on entend parfois, comme une morne plainte,
Quelque chien sans abri qui hurle au coin d’un bois.
Plus de chansons dans l’air, sous nos pieds plus de chaumes.
L’hiver s’est abattu sur toute floraison ;
Des arbres dépouillés dressent à l’horizon
Leurs squelettes blanchis ainsi que des fantômes.
La lune est large et pâle et semble se hâter.
On dirait qu’elle a froid dans le grand ciel austère.
De son morne regard elle parcourt la terre,
Et, voyant tout désert, s’empresse à nous quitter.
Et froids tombent sur nous les rayons qu’elle darde,
Fantastiques lueurs qu’elle s’en va semant ;
Et la neige s’éclaire au loin, sinistrement,
Aux étranges reflets de la clarté blafarde.
Oh ! la terrible nuit pour les petits oiseaux !
Un vent glacé frissonne et court par les allées ;
Eux, n’ayant plus l’asile ombragé des berceaux,
Ne peuvent pas dormir sur leurs pattes gelées.
Dans les grands arbres nus que couvre le verglas
Ils sont là, tout tremblants, sans rien qui les protège ;
De leur oeil inquiet ils regardent la neige,
Attendant jusqu’au jour la nuit qui ne vient pas.
Guy de Maupassant, Des vers

ARTE POÉTICA


Não sei em que mentira devo acreditar.
Essa a que chamam palavra.
A palavra é um excesso
e todos param
para olhar essa estranha.
A mim só me doem as pernas,
sou um artista que procura definições
e não aprecio essa festa.
Como pede a morte
como pede o amor
a palavra precisa da sua nudez.
Vivi em tantas palavras sós.
São palavras ou sons, mulher?
Sentir nervos
sempre é um bom sinal.
Dizei aos leitores
que não é um poema suicida,
porque estou só a sair
em busca de uma primeira palavra
que esteja habitada.
Os pássaros viajam em busca do seu alimento
na cinza dos teus olhos.
Como pede a morte
como pede o amor
a palavra precisa da sua nudez.
Ali tenho de amar.


Gustavo Ortiz, in A Sul de Nenhum Norte

Sonho de um cavalo branco

Sonho de um cavalo branco (the horse with no name)

                                                               "O cavalo dá-nos as asas que nos faltam!"

O cavalo branco chegou aquela famosa praça do centro histórico da cidade, sem o cavaleiro fiel e verdadeiro, eram mais ou menos duas da madrugada, ergueu as suas duas patas sobre as pedras da calçada e relinchou como se fosse Bird, a experimentar o seu saxofone, o que é certo é que aquela frequência foi suficiente para ali e acolá fragmentar cristais e vidros da janela.

Luzes foram sucessivamente acendendo-se, como casas de um tabuleiro de xadrês, por força de todo aquele inusitado momento de espanto, daquela incomum força da natureza.

A sua pele e suas crinas reluziam, embora não fosse lua cheia, mais por força das réstias de luz, de um ou outro candeeiro envergonhado, da publicidade dos néons, da que transpirava de uma janela, onde alguns ínsones ou noctívagos ainda viajavam. 

Manteve-se ali com as duas patas no ar, em pose de veemente discurso de Estado, até os residentes da praça acordarem, estava bem tratado, sem vestígio de qualquer arreio ou ferragem de ferreiro, o seu relinchar tinha raízes na alma que reza a história e a ciência os animais não tem, por mais inteligentes que possam ser.

Teria fugido de algum circo que tivesse chegado entretanto à cidade, farto das luzes da ribalta, do chicote de quem o domava, da comida do tratador ou da complacência das crianças, verificava-se no entanto que a sua atitude selvagem e demasiado desafiante, não era compatível com vivências de estábulo. 

As pessoas estremunhadas entretanto assomavam às janelas, do peitoril muitas envergavam os seus pijamas ou roupões, esfregavam os olhos e não queriam acreditar naquela visão que teimava em permanecer, como se fosse um candeeiro de mesa aceso, ali bem no centro da sua vida quotidiana, ali deixando-lhe em pedaços a rotina. 

Na mansarda uma empregada de mesa, de meia idade, que tinha ficado solteira comentava com o seu vizinho octagenário que " - É uma estampa de um animal e se vivesse no rés-do-chão, até podia ficar com ele!". Ao  que o outro replicou "Nunca se meta numa coisa dessas, um cavalo é um animal de muitos humores, tinha que levá-lo a passear e em vetererinário, as contas, um horror!".

Um velho professor de matemática estava deslumbrado perante a pureza daquela equação, quanto ocupava de área, a sombra do cavalo, naquele quadrado perfeito da praça que tinha nome de terceiro rei.

Uma rapariga modelo que há pouco tempo se tinha mudado para aquele 4º andar sem elevador, tinha aparecido com rabo de cavalo, para não destoar e gostava até, de um dia, ver o animal desfilar com ela na passarelle, mas pelo menos devia levar ferraduras e ela sapatos de salto alto de agulha, seria uma parelha que faria de certo as delícias da plateia.

Depois aquelas duas irmãs velhinhas, do cavalo branco, regressaram ao picadeiro, onde tinham tido lições de volteio, a olharem no grande espelho, o trote, o galope, o garbo branco dos seus alazões, esqueceram de quem era o ferro mas certamente de uma famîlia muito distinta do Vale de Santarém. Olharam-se nos olhos e viram aquele cavalo branco a empinar-se dentro de si, de rédea solta e com o freio nos dentes, gostavam destes comportamentos um pouco selvagens, um pouco rebeldes.

Um menino entre os seus progenitores perguntava "De que cor é o cavalo branco de Napoleão?" Os progenitores responderam em uníssono, um " Não sei!" . Estavam realmente preocupados com outras coisas, como é que era possível no século XXI, um cavalo chegar ao centro da cidade e se colocar naqueles despropósitos, a agitar a noite de pessoas que amanhã tem de trabalhar, já para não falar dos estragos.

O cavalo continuava ali na sua pose de pedestal vivo, embora se tivesse deixado de relinchos e concentrasse o seu olhar pestanudo, num caniche do primeiro andar, que parecia protestar, energicamente, aquela interrupção do sono.

A florista da esquina que morava numa cave ao nível da calçada, mulher para os seus cinquenta anos, muitos anos de praça e que dizia não haver nada que não tivesse visto, estava verdadeiramente espantada e dizia "Com mil ramos de cravos ou isto é um milagre, o cavalo de S. Jorge ou um novo 25 de Abril!". E preparou os seus cestos, para ir para a praça porque o evento era promissor neste tempo de crise.

Um intelectual que não fazia nada e vivia de romances intermitentes, comentava com o casal gay, que este cavalo representava muito mais do que um cavalo, era um libelo acusatório contra a normalidade e a sonolenta cidadania, um desespero animal perante a impossibilidade do sonho, um coice pela democracia. O casal assentia e olhava para o cavalo como um herói dos tempos modernos, neste tempo em que faltavam as referências e as estátuas equestres serviam apenas de poleiro, para os pombos com todos os outros inconvenientes.

Um jornalista de um conhecido diário, amaldiçoa-se por não ter ali a máquina fotográfica e na sua cabeça a caixa da primeira página, "O sonho de um cavalo branco", depois remeteria as explicações para as páginas interiores, sem sencionalismos, tentando encontrar explicações plausíveis para o fenómeno, fazer a pesquisa histórica, descrever a beleza íntrinseca do animal, a sua atitude de desafio e a assembleia espontânea e ocasional que se reuniu à sua volta, em hora imprópria, claro que não faltaria uma alusão às consequências sociais e políticas que um acontecimento desta natureza poderia provocar, daí para a frente.

Por fim, o cavalo desapareceu dali como um raio, por uma rua lateral, nem vestígios no solo da calçada, apenas os estilhaços dos vidros das janelas partidas, talvez alguns deles, do vento que se havia feito sentir, nos últimos tempos.

As pessoas aos poucos fecharam ou abandonaram as janelas e intrigadas perguntavam-se, se aquilo que acabaram de ver, era um cavalo verdadeiro ou uma ilusão de óptica, realidade virtual, um sonho colectivo ou mais um quadrúpede que sem nada de relevante para dizer, ocupou o espaço central, conhecedor das estratégias de marketing, pôs os seus pequenos mundos, por breves instantes de pernas para o ar, o que pensando bem, nos tempos que correm, de obstáculo em obstáculo, nem é muito difícil.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

J'habite Lisbonne

« J’habite Lisbonne, comme si j'habitais à la fin du monde, quelque part où seraient réunis des vestiges de toute l'Europe. À chaque coin de rue, je trouve des morceaux d'autres villes, d'autres corps d'autres voyages. Ici, il est encore possible d'imaginer une histoire et de 1a vivre; ou de rester 1à, immobile, à regarder le fleuve, à feindre que le temps et l'Europe n'existent pas - et probablement Lisbonne non plus. »  AlBerto