Sonho de um cavalo branco (the horse with no name)
"O cavalo dá-nos as asas que nos faltam!"
O cavalo branco chegou aquela famosa praça do centro histórico da cidade, sem o cavaleiro fiel e verdadeiro, eram mais ou menos duas da madrugada, ergueu as suas duas patas sobre as pedras da calçada e relinchou como se fosse Bird, a experimentar o seu saxofone, o que é certo é que aquela frequência foi suficiente para ali e acolá fragmentar cristais e vidros da janela.
Luzes foram sucessivamente acendendo-se, como casas de um tabuleiro de xadrês, por força de todo aquele inusitado momento de espanto, daquela incomum força da natureza.
A sua pele e suas crinas reluziam, embora não fosse lua cheia, mais por força das réstias de luz, de um ou outro candeeiro envergonhado, da publicidade dos néons, da que transpirava de uma janela, onde alguns ínsones ou noctívagos ainda viajavam.
Manteve-se ali com as duas patas no ar, em pose de veemente discurso de Estado, até os residentes da praça acordarem, estava bem tratado, sem vestígio de qualquer arreio ou ferragem de ferreiro, o seu relinchar tinha raízes na alma que reza a história e a ciência os animais não tem, por mais inteligentes que possam ser.
Teria fugido de algum circo que tivesse chegado entretanto à cidade, farto das luzes da ribalta, do chicote de quem o domava, da comida do tratador ou da complacência das crianças, verificava-se no entanto que a sua atitude selvagem e demasiado desafiante, não era compatível com vivências de estábulo.
As pessoas estremunhadas entretanto assomavam às janelas, do peitoril muitas envergavam os seus pijamas ou roupões, esfregavam os olhos e não queriam acreditar naquela visão que teimava em permanecer, como se fosse um candeeiro de mesa aceso, ali bem no centro da sua vida quotidiana, ali deixando-lhe em pedaços a rotina.
Na mansarda uma empregada de mesa, de meia idade, que tinha ficado solteira comentava com o seu vizinho octagenário que " - É uma estampa de um animal e se vivesse no rés-do-chão, até podia ficar com ele!". Ao que o outro replicou "Nunca se meta numa coisa dessas, um cavalo é um animal de muitos humores, tinha que levá-lo a passear e em vetererinário, as contas, um horror!".
Um velho professor de matemática estava deslumbrado perante a pureza daquela equação, quanto ocupava de área, a sombra do cavalo, naquele quadrado perfeito da praça que tinha nome de terceiro rei.
Uma rapariga modelo que há pouco tempo se tinha mudado para aquele 4º andar sem elevador, tinha aparecido com rabo de cavalo, para não destoar e gostava até, de um dia, ver o animal desfilar com ela na passarelle, mas pelo menos devia levar ferraduras e ela sapatos de salto alto de agulha, seria uma parelha que faria de certo as delícias da plateia.
Depois aquelas duas irmãs velhinhas, do cavalo branco, regressaram ao picadeiro, onde tinham tido lições de volteio, a olharem no grande espelho, o trote, o galope, o garbo branco dos seus alazões, esqueceram de quem era o ferro mas certamente de uma famîlia muito distinta do Vale de Santarém. Olharam-se nos olhos e viram aquele cavalo branco a empinar-se dentro de si, de rédea solta e com o freio nos dentes, gostavam destes comportamentos um pouco selvagens, um pouco rebeldes.
Um menino entre os seus progenitores perguntava "De que cor é o cavalo branco de Napoleão?" Os progenitores responderam em uníssono, um " Não sei!" . Estavam realmente preocupados com outras coisas, como é que era possível no século XXI, um cavalo chegar ao centro da cidade e se colocar naqueles despropósitos, a agitar a noite de pessoas que amanhã tem de trabalhar, já para não falar dos estragos.
O cavalo continuava ali na sua pose de pedestal vivo, embora se tivesse deixado de relinchos e concentrasse o seu olhar pestanudo, num caniche do primeiro andar, que parecia protestar, energicamente, aquela interrupção do sono.
A florista da esquina que morava numa cave ao nível da calçada, mulher para os seus cinquenta anos, muitos anos de praça e que dizia não haver nada que não tivesse visto, estava verdadeiramente espantada e dizia "Com mil ramos de cravos ou isto é um milagre, o cavalo de S. Jorge ou um novo 25 de Abril!". E preparou os seus cestos, para ir para a praça porque o evento era promissor neste tempo de crise.
Um intelectual que não fazia nada e vivia de romances intermitentes, comentava com o casal gay, que este cavalo representava muito mais do que um cavalo, era um libelo acusatório contra a normalidade e a sonolenta cidadania, um desespero animal perante a impossibilidade do sonho, um coice pela democracia. O casal assentia e olhava para o cavalo como um herói dos tempos modernos, neste tempo em que faltavam as referências e as estátuas equestres serviam apenas de poleiro, para os pombos com todos os outros inconvenientes.
Um jornalista de um conhecido diário, amaldiçoa-se por não ter ali a máquina fotográfica e na sua cabeça a caixa da primeira página, "O sonho de um cavalo branco", depois remeteria as explicações para as páginas interiores, sem sencionalismos, tentando encontrar explicações plausíveis para o fenómeno, fazer a pesquisa histórica, descrever a beleza íntrinseca do animal, a sua atitude de desafio e a assembleia espontânea e ocasional que se reuniu à sua volta, em hora imprópria, claro que não faltaria uma alusão às consequências sociais e políticas que um acontecimento desta natureza poderia provocar, daí para a frente.
Por fim, o cavalo desapareceu dali como um raio, por uma rua lateral, nem vestígios no solo da calçada, apenas os estilhaços dos vidros das janelas partidas, talvez alguns deles, do vento que se havia feito sentir, nos últimos tempos.
As pessoas aos poucos fecharam ou abandonaram as janelas e intrigadas perguntavam-se, se aquilo que acabaram de ver, era um cavalo verdadeiro ou uma ilusão de óptica, realidade virtual, um sonho colectivo ou mais um quadrúpede que sem nada de relevante para dizer, ocupou o espaço central, conhecedor das estratégias de marketing, pôs os seus pequenos mundos, por breves instantes de pernas para o ar, o que pensando bem, nos tempos que correm, de obstáculo em obstáculo, nem é muito difícil.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira