sábado, 15 de fevereiro de 2014

ARTE POÉTICA


Não sei em que mentira devo acreditar.
Essa a que chamam palavra.
A palavra é um excesso
e todos param
para olhar essa estranha.
A mim só me doem as pernas,
sou um artista que procura definições
e não aprecio essa festa.
Como pede a morte
como pede o amor
a palavra precisa da sua nudez.
Vivi em tantas palavras sós.
São palavras ou sons, mulher?
Sentir nervos
sempre é um bom sinal.
Dizei aos leitores
que não é um poema suicida,
porque estou só a sair
em busca de uma primeira palavra
que esteja habitada.
Os pássaros viajam em busca do seu alimento
na cinza dos teus olhos.
Como pede a morte
como pede o amor
a palavra precisa da sua nudez.
Ali tenho de amar.


Gustavo Ortiz, in A Sul de Nenhum Norte

Sonho de um cavalo branco

Sonho de um cavalo branco (the horse with no name)

                                                               "O cavalo dá-nos as asas que nos faltam!"

O cavalo branco chegou aquela famosa praça do centro histórico da cidade, sem o cavaleiro fiel e verdadeiro, eram mais ou menos duas da madrugada, ergueu as suas duas patas sobre as pedras da calçada e relinchou como se fosse Bird, a experimentar o seu saxofone, o que é certo é que aquela frequência foi suficiente para ali e acolá fragmentar cristais e vidros da janela.

Luzes foram sucessivamente acendendo-se, como casas de um tabuleiro de xadrês, por força de todo aquele inusitado momento de espanto, daquela incomum força da natureza.

A sua pele e suas crinas reluziam, embora não fosse lua cheia, mais por força das réstias de luz, de um ou outro candeeiro envergonhado, da publicidade dos néons, da que transpirava de uma janela, onde alguns ínsones ou noctívagos ainda viajavam. 

Manteve-se ali com as duas patas no ar, em pose de veemente discurso de Estado, até os residentes da praça acordarem, estava bem tratado, sem vestígio de qualquer arreio ou ferragem de ferreiro, o seu relinchar tinha raízes na alma que reza a história e a ciência os animais não tem, por mais inteligentes que possam ser.

Teria fugido de algum circo que tivesse chegado entretanto à cidade, farto das luzes da ribalta, do chicote de quem o domava, da comida do tratador ou da complacência das crianças, verificava-se no entanto que a sua atitude selvagem e demasiado desafiante, não era compatível com vivências de estábulo. 

As pessoas estremunhadas entretanto assomavam às janelas, do peitoril muitas envergavam os seus pijamas ou roupões, esfregavam os olhos e não queriam acreditar naquela visão que teimava em permanecer, como se fosse um candeeiro de mesa aceso, ali bem no centro da sua vida quotidiana, ali deixando-lhe em pedaços a rotina. 

Na mansarda uma empregada de mesa, de meia idade, que tinha ficado solteira comentava com o seu vizinho octagenário que " - É uma estampa de um animal e se vivesse no rés-do-chão, até podia ficar com ele!". Ao  que o outro replicou "Nunca se meta numa coisa dessas, um cavalo é um animal de muitos humores, tinha que levá-lo a passear e em vetererinário, as contas, um horror!".

Um velho professor de matemática estava deslumbrado perante a pureza daquela equação, quanto ocupava de área, a sombra do cavalo, naquele quadrado perfeito da praça que tinha nome de terceiro rei.

Uma rapariga modelo que há pouco tempo se tinha mudado para aquele 4º andar sem elevador, tinha aparecido com rabo de cavalo, para não destoar e gostava até, de um dia, ver o animal desfilar com ela na passarelle, mas pelo menos devia levar ferraduras e ela sapatos de salto alto de agulha, seria uma parelha que faria de certo as delícias da plateia.

Depois aquelas duas irmãs velhinhas, do cavalo branco, regressaram ao picadeiro, onde tinham tido lições de volteio, a olharem no grande espelho, o trote, o galope, o garbo branco dos seus alazões, esqueceram de quem era o ferro mas certamente de uma famîlia muito distinta do Vale de Santarém. Olharam-se nos olhos e viram aquele cavalo branco a empinar-se dentro de si, de rédea solta e com o freio nos dentes, gostavam destes comportamentos um pouco selvagens, um pouco rebeldes.

Um menino entre os seus progenitores perguntava "De que cor é o cavalo branco de Napoleão?" Os progenitores responderam em uníssono, um " Não sei!" . Estavam realmente preocupados com outras coisas, como é que era possível no século XXI, um cavalo chegar ao centro da cidade e se colocar naqueles despropósitos, a agitar a noite de pessoas que amanhã tem de trabalhar, já para não falar dos estragos.

O cavalo continuava ali na sua pose de pedestal vivo, embora se tivesse deixado de relinchos e concentrasse o seu olhar pestanudo, num caniche do primeiro andar, que parecia protestar, energicamente, aquela interrupção do sono.

A florista da esquina que morava numa cave ao nível da calçada, mulher para os seus cinquenta anos, muitos anos de praça e que dizia não haver nada que não tivesse visto, estava verdadeiramente espantada e dizia "Com mil ramos de cravos ou isto é um milagre, o cavalo de S. Jorge ou um novo 25 de Abril!". E preparou os seus cestos, para ir para a praça porque o evento era promissor neste tempo de crise.

Um intelectual que não fazia nada e vivia de romances intermitentes, comentava com o casal gay, que este cavalo representava muito mais do que um cavalo, era um libelo acusatório contra a normalidade e a sonolenta cidadania, um desespero animal perante a impossibilidade do sonho, um coice pela democracia. O casal assentia e olhava para o cavalo como um herói dos tempos modernos, neste tempo em que faltavam as referências e as estátuas equestres serviam apenas de poleiro, para os pombos com todos os outros inconvenientes.

Um jornalista de um conhecido diário, amaldiçoa-se por não ter ali a máquina fotográfica e na sua cabeça a caixa da primeira página, "O sonho de um cavalo branco", depois remeteria as explicações para as páginas interiores, sem sencionalismos, tentando encontrar explicações plausíveis para o fenómeno, fazer a pesquisa histórica, descrever a beleza íntrinseca do animal, a sua atitude de desafio e a assembleia espontânea e ocasional que se reuniu à sua volta, em hora imprópria, claro que não faltaria uma alusão às consequências sociais e políticas que um acontecimento desta natureza poderia provocar, daí para a frente.

Por fim, o cavalo desapareceu dali como um raio, por uma rua lateral, nem vestígios no solo da calçada, apenas os estilhaços dos vidros das janelas partidas, talvez alguns deles, do vento que se havia feito sentir, nos últimos tempos.

As pessoas aos poucos fecharam ou abandonaram as janelas e intrigadas perguntavam-se, se aquilo que acabaram de ver, era um cavalo verdadeiro ou uma ilusão de óptica, realidade virtual, um sonho colectivo ou mais um quadrúpede que sem nada de relevante para dizer, ocupou o espaço central, conhecedor das estratégias de marketing, pôs os seus pequenos mundos, por breves instantes de pernas para o ar, o que pensando bem, nos tempos que correm, de obstáculo em obstáculo, nem é muito difícil.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

J'habite Lisbonne

« J’habite Lisbonne, comme si j'habitais à la fin du monde, quelque part où seraient réunis des vestiges de toute l'Europe. À chaque coin de rue, je trouve des morceaux d'autres villes, d'autres corps d'autres voyages. Ici, il est encore possible d'imaginer une histoire et de 1a vivre; ou de rester 1à, immobile, à regarder le fleuve, à feindre que le temps et l'Europe n'existent pas - et probablement Lisbonne non plus. »  AlBerto

Viagem do autocarro 738



Vou pendurado no autocarro
à minha volta 
uma conferência de odores
exalando das axilas
uma exaltação de tecidos
que contornam
a solidão das carnes 
mais ou menos
substanciais.

Não consigo deixar
de mencionar as bocas
e os dentes 
mais ou menos alinhados
ou lavados
ali mesmo à minha frente,
ai se eu fosse do boxe
convidava alguns,
ai se fosse especialista
na sedução do amor
urgente.

Ali ía eu pendurado 
no autocarro
meio a fazer de Cristo
outro meio
a fazer de gente.

Duas raparigas 
acoitaram-se 
debaixo das minhas asas,
acharam-me inofensivo
nesta minha meia idade
um pouco altivo
quase indiferente
e sem se importarem,
lá continuaram sua conversa
de pequenas traições
ou atrações conforme o ponto de vista
e chegamos ao Monumental.

Entrou um grupo 
de estudantes de liceu
de mochila
com suas eternas
efémeras glórias
e entrou uma senhora grávida
e foi um sururu,
por causa dos lugares prioritários
e das mochilas,
de quem ficava sentado
quem se devia levantar primeiro,
malcriado pra aqui 
mal educado para acolá 
e até que em fim
e mãe e nascituros sentados.

Continua o baile
digo a viagem
sem mais incidentes
mais travagem 
menos travagem,
seu filho de uma senhora
de má fama
e do teu pai
que não tem culpa.

Entra um grupo de carteiristas
escolhem a vitíma
preparam os "garfos"
fazem a fita
aliviam uma senhora da carteira
tudo muito limpo
com muita elegância
por pouco dinheiro
o pior são os documentos.

Siga, siga viagem
uns sentados e outros em pé
estamos quase em fim-de-linha
uma senhor faz crochet
outra disse-me que lia 
pela sétima vez Anna Karenina

Havia um senhor reformado 
do metro
que agora só andava de autocarro
foram quase 40 anos a andar 
debaixo da terra
e tinha toda a razão.

De vez em quando
encontrava aquela miúda 
a quem as pessoas 
por vezes davam as mãos
e outras os pés
era manicure
de Belo Horizonte 
ou talvez nem tanto.

E encontrava a empregada
do Sr. Fonseca
- o semáforo nunca mais abre -
boa pessoa
muito católico
e arrumado
por vezes ríspido
quando estava a senhora, 
muito afável
e agradável
em outros momentos
e a conversa entrou 
num registo...
-  felizmente o semáforo ficou verde!

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



Periclitante



I
periclitante
o fruto
pendente
em busca
dos teus 
lábios

II
periclitante
a pedra solta
no muro
ave
na tua mão

III
periclitante
a espiga
madura
do trigo
a tristeza
do pão
sem sal

IV
periclitante
e prestes
a lágrima
furtiva

IV
periclitante
a queda
do pássaro
no primeiro
voo

V
periclitante
a nota
em falso
que se evade
do piano

VI
periclitante
a palavra
no céu da boca
e ainda
ausente

VII
periclitante
o último
botão
do vestido
depois
a solidão

VIII
periclitante
o dedo
a tremer
de medo
no gatilho

IX
periclitante
o gesto
aflito
e o passo
errante

X
periclitante
a estrela
cintilante
testemunha
inquieta
no beijo
urgente

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Letal



Letal
é a palavra
lâmina
de punhal
que sonha
afagar
a flor
adormecida
em qualquer
peito,
é deixar
de amar,
é o abandono
que nos mata
corrosão
que avança
para devastar
no final
a pureza
do olhar
de quem
se ama,
é a serpente
e é veneno
que já vão
a caminho
do incauto
coração,
letal
é a flecha
que cega
a noite
lentamente,
é barco
dentro de ti
a navegar
a respiração
agonizante,
é a morte
inevitável
das palavras
a reinventar
eternamente
outra letalidade
outra vida
menos vulnerável.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


                                                   Automat (1927) de Edward Hopper


E o Corvo aqui tão perto



Ontem, no meio bruma atlântica, hipóteses de vagas de vinte metros, ventos em que a velocidade que o anemómetro conseguiu medir chegou aos 157 kms/h.
Ontem foi insuportavelmente longo o dia, sobre os 17,13 km2º de superfície. Todos os deuses se puseram de acordo, em não deixar sair ninguém às canadas.
Os homens do isolado Corvo espreitaram para a nesga de mundo que lhe resta, pelos postigos e portas entreabertas.
Nas pequenas quadrículas dos caixilhos sobrevivia o Morro dos Homens, nestas tão fantásticas e verdadeiras terras do fim do mundo.

Lisboa,13 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira