domingo, 9 de fevereiro de 2014

Tempestade...



tempestade
é o impacto nas estruturas
do teu olhar
na minha carne já fraca
é o tornado de fogo que se gerou
no veludo dos teus lábios
e que me levou a alma

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

Onde


 
 

Onde
tenho estado
onde estou
Para onde foi a minha vida
A vivida
A que está por viver
Se tivesse sido outra
Seria a mesma outra
Não tenho mais vida
Para além desta
Que me vive.

Glória Gervitz
 

Mas devolver la luz es entregar de sombra una triste mitad

Mas devolver la luz
es entregar de sombra
una triste mitad

Si el sueño está ligado al peso de la sangre
cada sueño  se embriaga del lado donde reposa
del origen donde fluye más lento el aire
Si me duermo de un lado
orillas del mar vienen hasta los ojos
y se calla  el viento húmedo
y están livianas las piedras
que vuelven insignificantes
tus pertenencias en el mundo
La visión  puede ser el mareo
una corriente en la que llevando tu vida
se deshacen estas ansias jóvenes de dormir en cualquier lado
porque la sensatez es un barco
que no atraca en ninguna parte

UMA MULHER É APENAS...

     

Uma mulher é apenas
essa que às vezes
faz crescer ( no lugar errado )
a dúvida
numa ênfase sem lógica,
o arrepio que devagar...
Uma mulher impõe-se suavemente
com movimentos de peixe;
ela insinua-se nos teus sentidos e nas tuas palavras;
deixa um livro aberto entre os lençóis
e uma camélia
de fogo nas tuas pernas.

                                   Lourdes Espínola

A poesia é uma fraude...

A poesia é uma fraude sublime, leitor. Uma burla enorme.


Gerrit Komrij

Cada instante é um lugar perdido...

Cada instante é um lugar perdido em que te entregas
à passagem do tempo. A juventude é um vício
que perdemos inevitavelmente. Dizes: é breve o amor,
efémera a vida.


Somos uma estância museológica,
algo anacrónico que aprende a perdurar por medo
de morrer. Toca-me, conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo, soletra-o na segunda pessoa
do singular ao meu ouvido, dá-me qualquer coisa
que me pareça eterno.

Quem te manda sapateiro não tocar rabecão

Quem te manda sapateiro não tocar rabecão

Podia chamar-lhe Dionísio
por força das reminisciências afectivas
e do elixir da boa vida
era um destes sapateiros
de agora e de ontem 
que pedalam no esmeril 
e tiram olhos com uma sovela
e vivem na penumbra
de uma cave esconsa
onde a luz e o calor do sol
teimavam em entrar.
Ele ali esbracejava como um deus 
com os sapatos enfiados nas mãos 
como se se preparasse
para de novo subir aos céus.
Ali o cheiro das colas e das tintas
tem algo de alucinógéneo
de drogas leves
temperado a espaços 
pelo aroma de animal terreno
dos cabedais e das solas
e do chulé.
Dionísio foi-me explicando
que aqueles sapatos tão confortáveis
que lhe levara
já não valiam meias solas
enquanto pelo rabo do olho
não observava somente
os sapatos agulha 
que expectante 
lhe apontava uma senhora.
Quando emergi
e apanhei uma lufada de ar fresco
apeteceu-me música erudita
alaúde ou rabecão
uma qualquer ária dedicada a Dionísio
um amante de sapatos
e de histórias 
que vou procurando palmilhar
levando sempre 
os mesmos sapatos
para o concerto
digo para o conserto.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

O Sapateiro de Brodowski de Cândido Portinari