sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Son(h)o interrompido



Eram 3h47 da manhã, rezava o vermelho digital do despertador. Não sei se o sono foi interrompido pela insónia, se pelo assobio criado pela ventania no ricochete das empenas, se pela caixa de música e de fantasmas penduradas no estendal da marquise.
Não sou médico, nem psiquiatra mas parece-me relevante saber, por que razão não dormimos ou porque nos mantemos acordados, se temos esqueletos no armário, se é apenas o vento nos contrafortes das esquinas ou se deixaram de nos embalar os fantasmas que criámos.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

Carta de despedida aos amigos



“Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas não pelo que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais.
Entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos 60 segundos de luz.
Andaria quando os outros páram, acordaria quando os outros dormem.
Ouviria quando os outros falam e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate…
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.
Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre gelo e esperava que nascesse o sol.
Pintaria com um sonho de Van Gogh as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que oferecia à Lua.
Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas…
Meu Deus, se eu tivesse um pouco mais de vida, não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.
Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo Amor.
Aos Homens, provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.
A uma criança dar-lhe-ia asas, mas teria de aprender a voar sozinha.
Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês Homens…
Aprendi que todo o mundo quer viver em cima de uma montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta.
Aprendi que quando um recém-nascido aperta com sua pequena mão, pela 1ª vez, o dedo de seu pai, o tem agarrado para sempre.
Aprendi que um Homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer…”
Gabriel Garcia Marquez

Uma mulher apaixonou-se...

"Uma mulher apaixonou-se por um homem que estava morto havia anos. Não lhe bastava escovar-lhe os casacos, limpar-lhe o tinteiro, tocar o seu pente de marfim: teve de construir a sua casa sobre a sepultura dele e sentar-se com ele, noite após noite, na cave húmida."


Lydia Davis, Contos Completos

Subo a escada devagar...

Subo a escada devagar para sentir nos cascos a quentura da pedra.
Uma borboleta pousou no corrimão bem ao meu alcance.
Prendi-a pelas asas, mas tremeu tanto que soltei-a.
Saiu voando buleversada como se tivesse ficado cem anos presa.
Nos meus dedos, o pó prateado. Tão breve tudo.
Prendi assim a alegria, ainda há pouco foi minha,
mas se debateu tanto que abri os dedos antes que a ferisse,
não se pode forçar.
Um pouco mais que se aperte e não fica só o pó, mas a alma. 


Lygia Fagundes Telles

As palavras...

"As palavras de uma boa prosa significam o que elas dizem. As palavras de uma boa poesia significam o que elas não dizem."

G. K. Chesterton


Pinto a mim mesma...


SOLITUDE

SOLITUDE


Hoje é a grande noite do Joe, com uma leitura pública
o seu trabalho será finalmente reconhecido.
Tem vinte e três anos e várias vezes já se lembraram
do seu nome para uma residência artística.
Lizzie, a melhor do curso de escrita criativa,
também vai lá estar com a nova namorada,
o seu cabelo negro lampeja para toda a gente, parece um
corvo desaustinado quando entra em clubes literários.
Até Bonnie, a gigante americana, foi convidada,
e já acabava de se vestir no seu quarto
quando se lembrou, sem omitir um sorriso,
que ainda ontem à noite lhe ocorrera o suicídio,
numa mão um copo de barbitúricos,
na outra um livro manuseado.
As luzes do dormitório apagam-se, uma a uma
desaparecem as paredes  de  contraplacado
pejadas de recortes  da  Norton Anthology of Poetry 
e de frases que dissecam a morte da filosofia.
Os amigos vão juntos até Hampstead ver o Joe, 
onde dizem que tudo realmente acontece. 
Colocam gravatas uns nos outros, em casa juntam
todo o álcool que conseguem, sentem o peso
de cada uma das frases antes de partirem no comboio.
Da janela ainda vejo estes poetas a mijarem com vontade
sobre as roseiras, um fumo místico levanta-se
logo onde começa a propriedade privada.
Dou uma volta completa à cozinha comum,
largo um esgar indisposto para o lado,
inspecciono a carpete onde esmagaram beatas,
invoco os meus colegas para os detestar um a um.
É então que os olhos brilham e subo à mesa
onde se projeta a minha glória infinita. 
Digo as palavras que só eu imagino ouvir: 

«nesta noite tão especial, não consigo dizer
como vos estou agradecido por se terem
esquecido aqui de todas as bebidas.»
De Doze Passos Atrás, Artefacto, 2013.