quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

DIZIAS QUE GOSTAVAS (2003)



Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.


de "Vista de Um Pátio seguido de Desordem", Relógio d'Água,

TERRITÓRIO




TERRITÓRIO


Um céu de sombras
vermelho por dentro
clareira solta
sobre o mar
O sonho como um galo branco
iluminado de noite
para que os ossos da névoa
ganhem contornos de pele
Um pássaro vibrando
na solidão de cada ferida
O granítico ódio
destas ruas sem rostos
deste pranto sem corpo
de país castigado.

José Manuel de Vasconcelos
In "A Mão na Água que Corre"

De vez em quando...



De vez 
em quando
parece-me ouvir
a lengalenga
da minha avó
e sei que 
entre os seus dedos
brilhavam contas
de âmbar
e a alegria da fé
ao colo
da sua serena
bondade
eu adormecia.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Pequenos conflitos de José Guerra

Pequenos conflitos de José Guerra

José Guerra, as pessoas da aldeia mantinham uma distância, não pela infeliz coincidência do nome, mas porque nunca se sabia quando podia atacar, se alguém se aproximava da sua propriedade, já para não falar de sem querer ou por desconhecimento a poder pisar. Aí, era uma carga de trabalhos. 

Não dava o mínimo sinal de condescendência, ficava ali, naquele círculo do orgulho ferido, naquela solidão animal, de fera encurralada.

Podia por mero acaso, fazer uma aliança estratégica, no entanto mantém-se ali de garras afiadas
e cara de poucos amigos, diria de nenhuns amigos. 

Vivia, básicamente, do que produzia e de pequenas compras que fazia, nas raras visitas à mereceria, onde rosnava qualquer coisa parecida com palavras e atirava umas tantas moedas.

O azedume dos anos sobrepostos, endureceu-lhe o olhar, estreitou-lhe os lábios, não fosse escapar-lhe um improvável sorriso e as palavras tinham de sair-lhe da boca, como arestas vivas e como pedras polidas. 

Nas raras saídas que fazia do seu covil, deixava que caísse o crepúsculo e ía algures a contar os troncos do pinhal que ainda lhe pertenciam e senão teria havido alteração dos marcos.

Olhava da janela, entre as lâminas do estore com seu olhar afiado. De paz, o único sinal é o fumo branco que numa pequena coluna se escapa da chaminé.

A família já há muito que não tem contacto com ele, terá uns longínquos familiares na zona de Odemira, no entanto, ele há décadas que se mantém o mais distante possível da humanidade.

Algures quando era miúdo e andava a juntar as primeiras letras, recordo-me de um único sinal de fraqueza, não sei porque razão, uma folha de papel onde tinha feito algumas letras, amarfanhado, foi-lhe parar às mãos e percebi como o seu olhar sorria, depois olhou para um lado e para outro não fosse ser apanhado, a decifrar a humanidade.

Soube mais tarde que tinha vindo da I Guerra gazeado e que aquela casa continuava a ser a sua trincheira, nós, nós éramos todos alemães.

Amarfanhadas eram as cartas que chegavam à frente de combate e que a todos ajudava a acender a  fogueira ou a passar o Inverno gelado.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

o tempo...

o tempo
é tão breve
para aquela folha
que se desprende
que dança no ar
e no meu olhar
deixo-a depois
pousada no chão
até quando
só a brisa sabe

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

Pressentimento



Possui
esse enorme atributo
ou defeito
dos predadores
de tentar distinguir
na natureza
os movimentos subtis
os matizes
da paisagens os rumores
o tremor do frio
o murmúrio cúmplice
dos sinais
os passos longínquos
que persegue
a destilação dos odores
na fruta que cai
o crepitar
das folhas num abrigo
o eclodir do cio
consegue identificar.

Porém
se reconhece
que estás em perigo
aí tudo se esvai
no caudal
a transbordar desse rio
do amor
que freme
ao chegar ao porto  
de qualquer peito
e que fazendo
mais humano o animal
não o consegue
esconder  de si próprio
a sangrar
excessivamente
exposto
à violência da paixão
e do desejo
cercado pela alcateia
do costume
e da razão
fazendo que em breve
se renda
e esteja morto.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira




                                      
                                          Imagem de autor desconhecido de Tigre da Índia

Barcarole (Offenbach) - The Philadelphia Orchestra (+lista de reprodução)