INTERIOR DE UMA mansarda. O POETA, deitado no catre, medita de olhos semicerrados. Na única cadeira existente, o CÃO. Atrás da porta está pendurada uma gaiola e, dentro da gaiola, o canário enlanguesce. É absolutamente necessário que o pássaro não dê nem um trinado durante todo o tempo que dure este primeiro, único e brevíssimo acto, pelo que se recomenda a utilização de um canário embalsamado ou de pano.
CÃO – Ouve.
POETA – (Sem mudar de posição.) O que é?
CÃO – Tenho fome.
POETA – Eu também, mas não penso nisso.
CÃO – E os ossos de ontem?
POETA – Foram-se.
CÃO – Sozinhos?
POETA – Sozinhos.
CÃO – Como foi isso?
POETA – Foi esta manhã, quando estavas na rua. O miúdo da porteira pôs-se a tocar o seu tambor de folha. Então os ossos levantaram-se e foram-se embora a desfilar três a três.
CÃO – Seriam ossos de soldados.
POETA – Foi precisamente isso que pensei. Não há muito tempo, parece-me, houve uma guerra.
Silêncio. O CÃO volta a apoiar a cabeça entre as patas e o POETA suspira profundamente.
Javier Tomeo
Histórias mínimas
Tradução de Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Tem cara de perder. Esta semana voltou a não levar preservativos e nunca mais comprou comida para o cão. Se calhar divorciaram-se, e ficou ela com o bicho. Só não percebo como é que ele sozinho consegue beber tanto leite. Perdeu também um pouco da arrogância com que habitualmente me passava o visa. Mas devia ser bonito, em novo.
Manuel de Freitas Isilda ou a Nudez dos Códigos de Barras Black Sun Editores 2001