quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
Outra vez...
Outra vez
este pesadelo recorrente
sozinho no tabuleiro da ponte
suspenso de um sonho
decadente
na outra margem do tempo
o teu lenço
envolve o rosto
eloquente
uma gaivota que resgata
a promessa de beijo
da cinza
ou do aluvião da corrente
enquanto pilares se inclinam sobre o Tejo
e o presente
se extingue perigosamente
chamo-te aos gritos
e gesticulo e corro
e querendo
não ando em frente
cresce uma a névoa
e a sensação de desterro
acordo estremunhadamente
e percebo o fumo do cigarro
mal apagado
que ameaça acender
no teu retrato
um rio de fogo
e levar-te
ignora que o sonho acordado
do teu rosto
nas duas margens
irá permanecer
por toda a parte
aceso para sempre.
Lisboa, 15 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira
Gif de autor desconhecido
este pesadelo recorrente
sozinho no tabuleiro da ponte
suspenso de um sonho
decadente
na outra margem do tempo
o teu lenço
envolve o rosto
eloquente
uma gaivota que resgata
a promessa de beijo
da cinza
ou do aluvião da corrente
enquanto pilares se inclinam sobre o Tejo
e o presente
se extingue perigosamente
chamo-te aos gritos
e gesticulo e corro
e querendo
não ando em frente
cresce uma a névoa
e a sensação de desterro
acordo estremunhadamente
e percebo o fumo do cigarro
mal apagado
que ameaça acender
no teu retrato
um rio de fogo
e levar-te
ignora que o sonho acordado
do teu rosto
nas duas margens
irá permanecer
por toda a parte
aceso para sempre.
Lisboa, 15 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira
Gif de autor desconhecido
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
Instantes
Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
e profundamente cada minuto de sua vida;
claro que tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver trataria somente
de ter bons momentos.
Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;
não percam o agora.
Eu era um daqueles que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas e,
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo
(Nota: este poema não é de Jorge Luis Borges)
Don Herold
Leis no coração do caos
Se urdimos leis no coração do caos, foi para as pernas não tropeçarem uma na outra, foi para que os braços não enrolassem o pescoço, foi para que o destino ficasse mais longe.
Henrique Manuel Bento Fialho
Henrique Manuel Bento Fialho
Habitar Herberto
(…) um poema é a melhor crítica a um poema (…) *
estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela *
Prendo na mão o teu hálito
quente e já a minha pele não resiste à
combustão iniciática.
Hoje é um dia claro e quieto. As bocas
descansam numa respiração branca
imperturbada
e só o teu hálito
persiste no labor das chamas,
no cantante ofício de forjar as palavras
que me pões a arder nas linhas da mão
como um destino.
Laranja, pêra, madeira, luz, cabelo, fogo, ar.
Substantivo.
Língua.
Ardem-me nos olhos e nos contornos
inflamáveis das coisas
que carregam o fogo.
Cabelo. Madeira.
Ainda há pouco o meu cabelo era só
um punhado de fios castanhos,
sem temperatura e sem elemento.
Agora tenho madeira quente a
estalar nele. Cabelo de primeira fêmea.
Leio-te fogo e logo o dia branco
irrompe em chamas.
Tudo é consumido no teu substantivo –
fêmea, macho, calendário.
A matéria ateada é uma constelação de astros
em brasa.
Dedos, boca, umbigo, dorso, mênstruo, púbis, flancos.
Língua.
Sinto a laranja na tua respiração.
Aperto-a na palma da mão e
refaço-a na boca. Escorre-me o sumo pelo
queixo, pelos braços, pelo ventre.
Flancos, mênstruo.
O meu útero incendiado, a
urgência menstrual.
E a tua língua a explodir-me
no centro do corpo.
* Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo
Helena Carvalho, in Revista Cràse nº 1.
FELIZES OS NORMAIS
A Antonia Eiriz
Felizes os normais, esses seres estranhos,
Os que não tiveram uma mãe louca, um pai bêbedo, um filho delinquente,
Uma casa em lado nenhum, uma doença desconhecida,
Os que não foram calcinados por um amor devorante,
Os que viveram os dezassete rostos do sorriso e um pouco mais,
Os cheios de sapatos, os arcanjos com chapéus,
Os satisfeitos, os gordos, os lindos,
Os rin-tin-tins e os seus sequazes, os que claro que sim, faça favor,
Os que ganham, os que são queridos até ao punho,
Os flautistas acompanhados por ratos,
Os vendedores e os seus compradores,
Os cavalheiros ligeiramente sobre-humanos,
Os homens vestidos de trovões e as mulheres de relâmpagos,
Os delicados, os sensatos, os finos,
Os amáveis, os doces, os comestíveis e os bebíveis.
Felizes as aves, o estrume, as pedras.
Mas que abram alas aos que fazem os mundos e os sonhos,
As ilusões, as sinfonias, as palavras que nos desbaratam
E nos constroem, os mais loucos que as suas mães, os mais bêbedos
Que os seus pais e mais delinquentes que os seus filhos
E mais devorados por amores calcinantes.
Que lhes deixem o seu sítio no inferno, e basta.
Roberto Fernández Retamar, trad. Vasco Gato
Os que não tiveram uma mãe louca, um pai bêbedo, um filho delinquente,
Uma casa em lado nenhum, uma doença desconhecida,
Os que não foram calcinados por um amor devorante,
Os que viveram os dezassete rostos do sorriso e um pouco mais,
Os cheios de sapatos, os arcanjos com chapéus,
Os satisfeitos, os gordos, os lindos,
Os rin-tin-tins e os seus sequazes, os que claro que sim, faça favor,
Os que ganham, os que são queridos até ao punho,
Os flautistas acompanhados por ratos,
Os vendedores e os seus compradores,
Os cavalheiros ligeiramente sobre-humanos,
Os homens vestidos de trovões e as mulheres de relâmpagos,
Os delicados, os sensatos, os finos,
Os amáveis, os doces, os comestíveis e os bebíveis.
Felizes as aves, o estrume, as pedras.
Mas que abram alas aos que fazem os mundos e os sonhos,
As ilusões, as sinfonias, as palavras que nos desbaratam
E nos constroem, os mais loucos que as suas mães, os mais bêbedos
Que os seus pais e mais delinquentes que os seus filhos
E mais devorados por amores calcinantes.
Que lhes deixem o seu sítio no inferno, e basta.
Roberto Fernández Retamar, trad. Vasco Gato
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