sexta-feira, 10 de janeiro de 2014
CASA DA MISERICÓRDIA
O pai fuzilado.
Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe, a miséria e a fome,
a instância que alguém lhe escreve à máquina:
Saludo al vencedor, Segundo Año Triunfal,
Solicito a Vuecencia deixar os filhos
nesta Casa da Misericórdia.
O frio do seu amanhã está numa instância.
Os orfanatos e hospícios eram duros,
mas ainda mais dura era a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, tem de ser cruel.
Não há mais nada. A poesia é agora
a última casa da misericórdia.
Joan Margarit - "Casa da Misericórdia"(tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas). Entrocamento: OVNI, 2009.
Anjos apaixonados
Quando os anjos se apaixonam
dançam nas cabeças de alfinetes,
lançam-se em bolas de fogo, ou permanecem
submersos na poça durante horas.
Por vezes até golpeiam os punhos
com lâminas de barbear ou lascas de madeira
não conseguindo, claro, rasgar a delicada pele.
Pois, na ausência de sofrimento ou de entusiasmo,
de que outro modo emulariam o nosso amor?
Pat Boran, Grisu nº 1
dançam nas cabeças de alfinetes,
lançam-se em bolas de fogo, ou permanecem
submersos na poça durante horas.
Por vezes até golpeiam os punhos
com lâminas de barbear ou lascas de madeira
não conseguindo, claro, rasgar a delicada pele.
Pois, na ausência de sofrimento ou de entusiasmo,
de que outro modo emulariam o nosso amor?
Pat Boran, Grisu nº 1
O Medo
O medo era uma herança incómoda na vida do Senhor Ibsen. Não só o medo que os outros podiam sentir por causa dele, mas o medo que ele sentia na análise vulnerável do seu comportamento íntimo e emocional. Tinha um profundo horror às suas próprias reacções, embora fosse capaz de fazer a previsão da gravidade do seu estado de espírito. Intuía quando um infeliz diálogo se desviava para uma zona de violência, sem no entanto conseguir reprimir a sua ira contra alguém. Nunca o Senhor Ibsen poderia controlar o medo que sentia porque o medo era o único sentimento que o ligava à infância e aos pais. Em momentos infectados de maldade, quando a vida dos dois parecia rodopiar num ralo infernal, o Senhor Ibsen considerava a Rita como modelo de caracterização da própria mãe, e dessa forma sentia-se incomodado por tantos estragos causados pela sua consciência devoradora. O que ele deixava escapar do seu comportamento agressivo podia ser entendido por uma sequência de cópias ou representações de atitudes e situações desencadeadas durante a infância, sentindo a presença da Rita como algo precariamente humano e exposta ao seu instinto fulminante e esmagador. O Senhor Ibsen incomodava-se cada vez mais com o seu medo indecente desempenhado pelos seus actos recheados de insanidade moral. Sempre que ele e a Rita se enfrentavam, a mãe e o pai surgiam num ponto transtornado do palco na sua memória como duas silhuetas que representassem uma cena a ameaçar a vida numa complicada ciência de inutilidades conjugais. Havia em tudo o que ele observava diante daquele palco de representação familiar, em todo aquele espaço íntimo e dramático, uma monstruosidade real que o obrigava a meditar sobre a cenografia do medo. O medo que ele transportara da infância e que agora o dominava por completo, corroendo numa alucinação triste e magoada toda a trama dos primeiros tempos de confiança e amor. Tudo a ficar sem história na sua vida, o medo a transformar-se na imagem da mãe que devora a sua própria cria. E o tempo abatia-se sobre ele e sobre todos os que viviam com ele como um caminho cheio de pó. Como um pano que desce sobre um palco onde o silêncio tem a orgulhosa tarefa de ocultar quem fomos e em que espécie de pessoas nos tornámos.
Em Brutal
Ulisseia, 2011
quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
Seria o Amor Português
Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.
Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.
Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.
Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?
Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”
Viagens XVI
Sei que não irei voltar.
No retrovisor, tolda-se a tua imagem,
na paragem do tempo.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira
Viagens XV
Sempre vivemos nesta indecisão,
esta mania das grandezas, na falsa modéstia
dos pequenos passos e na ficção da grande viagem.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira
Solidão
“… Uma noite dos meus quinze anos dei comigo a chorar. Não sei já qual foi o caminho que me conduziu às lágrimas, tudo vai tão longe, perdido na fita branca do passado. Só me recordo de que o pai me ouviu e se levantou. Sentou-se ao de leve na borda da minha cama, pôs-se a acariciar-me os cabelos, quis saber o que eu tinha.
- Estou só, pai. Não é mais nada. Dei porque estava só e isso pareceu-me… Que parvoíce, não é? Estou agora só! E tu então?
Tentei rir a tapar-me, já arrependida da franqueza, mas ele não colaborou e isso salvou-o da raiva que eu havia de lhe ter na manhã seguinte. Não se riu e a sua voz, quando veio, era muito doce, quase triste.
- Também deste por isso – disse brandamente – Também deste por isso. Há gente que vive setenta e oitenta anos, até mais, sem nunca se dar conta. Tu aos quinze… Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança.
- Mas tu, pai…
- Eu… As pessoas que enchem o teu mundo não são diferentes das do meu… No fundo é muito provável que algumas delas sejam as mesmas, mas aí está, se fosse possível encontrarem-se não se reconheciam nem mesmo fisicamente…
Como havemos de nos ajudar? Ninguém pode, filha, ninguém pode…
Ninguém pôde.
…" (excerto)
- Estou só, pai. Não é mais nada. Dei porque estava só e isso pareceu-me… Que parvoíce, não é? Estou agora só! E tu então?
Tentei rir a tapar-me, já arrependida da franqueza, mas ele não colaborou e isso salvou-o da raiva que eu havia de lhe ter na manhã seguinte. Não se riu e a sua voz, quando veio, era muito doce, quase triste.
- Também deste por isso – disse brandamente – Também deste por isso. Há gente que vive setenta e oitenta anos, até mais, sem nunca se dar conta. Tu aos quinze… Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança.
- Mas tu, pai…
- Eu… As pessoas que enchem o teu mundo não são diferentes das do meu… No fundo é muito provável que algumas delas sejam as mesmas, mas aí está, se fosse possível encontrarem-se não se reconheciam nem mesmo fisicamente…
Como havemos de nos ajudar? Ninguém pode, filha, ninguém pode…
Ninguém pôde.
…" (excerto)
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