quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Mudamos esta noite



E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias

António Reis - Poemas Quotidianos, Portugália (col. «Poetas de Hoje»), Lisboa, 1967

“Estar só é estar no Íntimo do Mundo”


Por vezes   cada objecto   se ilumina 
do que no passar é pausa íntima 
entre sons minuciosos que inclinam 
a atenção para uma cavidade mínima 
E estar assim tão breve e tão profundo 
como no silêncio de uma planta 
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice 
ou na alvura de um sono que nos dá 
a cintilante substância do sítio 
O mundo inteiro assim cabe num limbo 
e é como um eco límpido e uma folha de sombra 
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes 
E é astro imediato de um lúcido sono 
fluvial e um núbil eclipse 
em que estar só é estar no íntimo do mundo 

(António Ramos Rosa, in “Poemas Inéditos”)

Cada vez mais...

Cada vez mais, vejo gente
com uma venda
a tapar-lhes os olhos.

Até já vi gente que
afastando-lhes um pouco a venda

a voltaram a colocar correctamente.


Antonio Orihuela

Grão de esperança


"Tenho pena, muita pena, mas de profeta só encontro em mim o ter sido em tempos poeta e o guardar o grão de esperança de o continuar a ser um pouco, no modo menor de uma alma ainda não inteiramente dominada pelo insustentável vazio da nossa época atravancada de grandes narcisismos e de medíocres ambições. (...)"

António Quadros
Mais Semanário | 31 de Dezembro de 1988

O que é isso da solidão?



Chovia copiosamente 
na esplanada em frente ao mar
uma mulher de óculos escuros chorava discreta
o mar andava para trás e para frente
sem saber o que fazer
eu estava encharcado sem a porra de um chapéu de chuva
a fazer contas â vida
o empregado do restaurante recolhia uma garrafa
de água sem gaz
um cão vadio mantinha-se a uma distância de segurança
do lado da barra
a noite desesperava perante tanta indefenição
mas enfim lá se ia aproximando
o poeta cansado de esperar
agarrou na chave do poema e trancou-os 
com três voltas
assim vão aprender o que é a solidão.

Lisboa, 1 de janeiro de 2014
Carlos Vieira

Ave haiku LXXV



As gaivotas no areal
pelo canto do olho espiavam o oceano
enquanto jogavam ao jogo do galo.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Não mais me deitar no feno perfumado ou deslizar na neve deserta.

          Não mais me deitar no feno perfumado ou deslizar na neve deserta.
Onde eu exatamente me encontro?
O que me surpreende é a impressão de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice.
O tempo é irrealizável.
Provisoriamente o tempo parou para mim.
Provisoriamente.
Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro.
O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar.
Portanto, ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minha necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo.
Hoje, que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. Não sou escrava dele.
O que eu sempre quis foi comunicar unicamente da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida.
Acredito que eu consegui fazê-lo.
Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade.
Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.
Simone de Beauvoir