quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Cada vez mais...

Cada vez mais, vejo gente
com uma venda
a tapar-lhes os olhos.

Até já vi gente que
afastando-lhes um pouco a venda

a voltaram a colocar correctamente.


Antonio Orihuela

Grão de esperança


"Tenho pena, muita pena, mas de profeta só encontro em mim o ter sido em tempos poeta e o guardar o grão de esperança de o continuar a ser um pouco, no modo menor de uma alma ainda não inteiramente dominada pelo insustentável vazio da nossa época atravancada de grandes narcisismos e de medíocres ambições. (...)"

António Quadros
Mais Semanário | 31 de Dezembro de 1988

O que é isso da solidão?



Chovia copiosamente 
na esplanada em frente ao mar
uma mulher de óculos escuros chorava discreta
o mar andava para trás e para frente
sem saber o que fazer
eu estava encharcado sem a porra de um chapéu de chuva
a fazer contas â vida
o empregado do restaurante recolhia uma garrafa
de água sem gaz
um cão vadio mantinha-se a uma distância de segurança
do lado da barra
a noite desesperava perante tanta indefenição
mas enfim lá se ia aproximando
o poeta cansado de esperar
agarrou na chave do poema e trancou-os 
com três voltas
assim vão aprender o que é a solidão.

Lisboa, 1 de janeiro de 2014
Carlos Vieira

Ave haiku LXXV



As gaivotas no areal
pelo canto do olho espiavam o oceano
enquanto jogavam ao jogo do galo.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Não mais me deitar no feno perfumado ou deslizar na neve deserta.

          Não mais me deitar no feno perfumado ou deslizar na neve deserta.
Onde eu exatamente me encontro?
O que me surpreende é a impressão de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice.
O tempo é irrealizável.
Provisoriamente o tempo parou para mim.
Provisoriamente.
Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro.
O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar.
Portanto, ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minha necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo.
Hoje, que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. Não sou escrava dele.
O que eu sempre quis foi comunicar unicamente da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida.
Acredito que eu consegui fazê-lo.
Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade.
Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.
Simone de Beauvoir

SOMERSET MAUGHAM: Duro e cruel é o mundo. Ninguém sabe por que esta­mos aqui, nem para onde vamos... Teríamos que en­tender humildemente a beleza da quietude, esforçar-nos por atravessar a vida sem ruído — a fim de que o aca­so não se desse conta de nós — e buscar o afeto de criaturas simples e ignorantes; falar pouco, viver es­condidos em nosso canto: eis a verdadeira sabedoria!

SOMERSET MAUGHAM: Duro e cruel é o mundo. Ninguém sabe por que esta­mos aqui, nem para onde vamos... Teríamos que en­tender humildemente a beleza da quietude, esforçar-nos por atravessar a vida sem ruído — a fim de que o aca­so não se desse conta de nós — e buscar o afeto de criaturas simples e ignorantes; falar pouco, viver es­condidos em nosso canto: eis a verdadeira sabedoria!

AMOR


A minha maneira de te amar é simples:
aperto-te contra mim
como se houvesse um pouco de justiça no meu coração
e eu ta pudesse dar com o corpo.

Quando revolvo os teus cabelos
algo de belo se forma entre as minhas mãos.

E quase não sei mais nada. Só aspiro
a estar em paz contigo e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes também pesa no meu coração.


Antonio Gamoneda