terça-feira, 31 de dezembro de 2013

mostras-me o fim do mundo


Mostras-me o fim do mundo
o Inferno de Dante
onde o Diabo nos arde na sua fogueira
com os demónios todos juntos
mesmo assim quero ir contigo
vou contigo para o fim do mundo
para o fim da Terra
para o Céu ou o Inferno
vou contigo para a fogueira do Inferno
lá quero-me arder contigo
e ardemos os dois
ao mesmo tempo trespassados pela faca do amor.


António Gancho

Debaixo do colchão tenho guardado


Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.


António Franco Alexandre

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O silêncio e a solidão


Um dia rebentaram-lhe os pulmões de tanto respirar tudo até ao fim.
Não conseguiu suportar as cóleras contidas nem a sujidade das ruas nem a metamorfose dos dias.
Um poeta disse-lhe «todas as noites parecem sair do mesmo céu, são pedaços de linho enegrecido».
Respondeu-lhe que metesse as metáforas no cu e desatou a correr, movida pelo álcool.
Depois, dirigiu-se a um jornalista, pedindo-lhe que fizesse uma reportagem sobre o silêncio e a solidão que envolvia os ratos em galerias fantásticas.


António Ferra, Marias Pardas

MÚSICA


Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.

Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.


A poesia protege-te...

a poesia protege-te
dispõe-se em ti como uma árvore a guardar uma paisagem
circunda-te de torres que deixam ver o céu.
não temas pois o cerco
que o horizonte alarga-se por entre as portas
em cada pedra cada tábua começa um poema
se guião ou guardião não sabemos
pronuncia apenas as palavras
na língua o vendaval
e há quem diga que morre desprotegido
há quem diga que a palavra volta ao mundo
latente
sacrificada
em nome das matérias que luzem menos
para se fazer da tábua a pedra
da casa o poema.


André Tomé

Um icebergue à deriva



Sobre o degelo da calote polar
pairam as asas verdes da aurora boreal
e o quebra-gelo avança
e pela grande superfície branca do ártico
desliza tranquilo o trenó
tornam-se mais humanas as neves eternas
após pueril beijo à esquimó
chega empoleirado nas hastes de uma rena 
o sol da meia-noite
e isto ainda não era uma vez os dinossauros
nem sou do Greenpeace
nem um documentário do National Geographic.

Lisboa , 30 de Dezembro de 2013


Carlos Vieira

A partir de agora, fora


A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

Ana Salomé