domingo, 29 de dezembro de 2013

Pintura


Onde se diz espiga 
leia-se narciso. 
Ou leia-se jacinto. 
Ou leia-se outra flor. 
Que pode ser a mesma. 

As flores 
são formas 
de que a pintura se serve 
para disfarçar 
a natureza. Por isso 
é que 
no perfil 
duma flor 
está também pintado 
o seu perfume. 

Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"



10 de julho 84 / r. forte / sines


Mas, no fundo, já nada é muito importante. Já não amo. Já não me dá gozo foder. Já não como com prazer. Durmo mal, canso-me depressa. Não sei onde ia. Chateia-me falar. Tudo me aborrece. Nenhum consolo para esta solidão. Às vezes, penso que são manias minhas. Que me disponho para este estado de grande desolação, propositadamente. Depois, tenho muito medo de saber que detesto o mundo. E medo de não encontrar remédio para isto. Nem o sono, o esquecimento de si mesmo. Nem o repouso do corpo ao sol, nem o abandono de tudo... nem o deserto onde poderia inventar um novo corpo, uma insuspeita vontade de continuar a viver.


Al Berto, Diários

sábado, 28 de dezembro de 2013

Natal Branco



Foi um Natal Branco
e molhado à luz velada e um lençol frio 
e desinfectado onde foi embrulhado no hospital.

Lisboa, 28 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LX



Vou a correr para dentro da noite
todo o conhecimento me abandona
só se pode voar se apenas a solidão nos acompanha.

Lisboa, 28 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LVIX



Lá fora na noite gélida 
daqui até à orla da floresta apenas a silhueta
de uma ave noturna traída pela lua cheia.

Lisboa, 28 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Os poemas...


Os poemas podem ser desolados
como uma carta devolvida,
por abrir. E podem ser o contrário
disso. A sua verdadeira consequência
raramente nos é revelada. Quando,
a meio de uma tarde indistinta, ou então
à noite, depois dos trabalhos do dia,
a poesia acomete o pensamento, nós
ficamos de repente mais separados
das coisas, mais sozinhos com as nossas
obsessões. E não sabemos quem poderá
acolher-nos nessa estranha, intranquila
condição. Haverá quem nos diga, no fim
de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta?
Não sabemos. Mas escrevemos, ainda
assim. Regressamos a essa solidão
com que esperamos merecer, imagine-se,
a companhia de outra solidão. Escrevemos,
regressamos. Não há outro caminho.

Rui Pires Cabral

Cuidado...

Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
que se desfia
pouco a pouco. Guardo
silêncio
para que possam ouvi-lo
desfazer-se.


Ruy Cinatti