domingo, 29 de dezembro de 2013

Ave haiku LXII



No vermelho fogo do crepúsculo africano,
sobre o dorso do búfalo, pousa um anjo 
de bico amarelo que devora parasitas.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Ave haiku LXI



O falcão mergulhou 
no abismo, não teve dificuldade 
em escolher a presa.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

só (solidão)


Estamos nus como os gregos na Acrópole
e o sol que nos mira também os fitou.
Mas fazemos amor de relógio no pulso.


Rui Knopfli

Um homem tinha três gatos

.

Um branco, um preto, e um branco e preto. O gato branco era mau, o preto era bom, e o branco e preto era assim-assim. Para atenuar as diferenças e promover a boa convivência, o homem pintou de preto os bigodes do gato branco, de branco os bigodes do gato preto, e de verde os bigodes do gato branco e preto. O gato branco com bigodes pretos e o gato preto com bigodes brancos ficaram com muitos ciúmes do gato branco e preto com bigodes verdes. E este ficou com ciúmes daqueles por outras razões. Os ciúmes eram tantos e tão variados que o homem foi tomado de uma febre terrível e começou a cuspir bolas de pêlo. Morreu num ápice. Os gatos enterraram-no no sótão.


Rui Manuel Amaral

a evocação do chimpanzé


comprei um bilhete e um cartucho de amendoins e
entrei no cinema. tu compraste um bilhete e um
cartucho de amendoins e entraste no cinema, sen
támo-nos na mesma fila, lado a lado. eu abri o meu
cartucho de amendoins, tu abriste o teu cartucho
de amendoins, com um ruído exactamente igual ao
meu. voltei-me para ti e mostrei os dentes. tu
voltaste-te para mim e mostraste os dentes. quan
do a luz apagou, tu pousaste o teu cartucho de a
mendoins no colo e eu pousei o meu cartucho de
amendoins no colo. com a mão direita comecei a le
vantar-te a saia. para me facilitar a tarefa, tu
levantaste levemente as nádegas do assento. com
esse gesto, caiu-te do colo o cartucho de amendo
ins. assim que os amendoins acabaram de se espal
har no chão, abaixei-me para tos apanhar, mas es
queci-me do meu cartucho de amendoins, o qual me
caiu igualmente ao chão. gastei um tempo enorme
a procurar e a recolher todos os amendoins. lembro
me de que passei o tempo quase todo até ao inter
valo recolhendo amendoins. todo o tempo tu
não deixaste de suspirar e de gemer, embora esti
vesse apenas a decorrer um documentário sobre
o narciso e nenhum drama comovente. a voz do lo
cutor lembro-me que dizia: «no começo da primave
ra, quando montes e vales acordam do longo sono
de inverno, centenas e centenas de narcisos ele
vam as douradas cabeças em todas as frestas e a
brigos do solo, e lançam seu olhar inocente pelos
portentosos rochedos e pelas raízes nodosas da
floresta.» isto, como certamente te lembras, foi
antes do intervalo. depois, quantas vezes, oh quan
tas vezes não deixaste cair e eu não deixei cair
os amendoins que nos restavam. e ora eu, ora tu,
de cada vez descíamos a procurá-los, e a colhê-los
com suaves, ternos guinchos. o filme, no dizer da
crítica, era daqueles que se não podem perder.

Alberto Pimenta, Poemas com Cinema

Pintura


Onde se diz espiga 
leia-se narciso. 
Ou leia-se jacinto. 
Ou leia-se outra flor. 
Que pode ser a mesma. 

As flores 
são formas 
de que a pintura se serve 
para disfarçar 
a natureza. Por isso 
é que 
no perfil 
duma flor 
está também pintado 
o seu perfume. 

Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"



10 de julho 84 / r. forte / sines


Mas, no fundo, já nada é muito importante. Já não amo. Já não me dá gozo foder. Já não como com prazer. Durmo mal, canso-me depressa. Não sei onde ia. Chateia-me falar. Tudo me aborrece. Nenhum consolo para esta solidão. Às vezes, penso que são manias minhas. Que me disponho para este estado de grande desolação, propositadamente. Depois, tenho muito medo de saber que detesto o mundo. E medo de não encontrar remédio para isto. Nem o sono, o esquecimento de si mesmo. Nem o repouso do corpo ao sol, nem o abandono de tudo... nem o deserto onde poderia inventar um novo corpo, uma insuspeita vontade de continuar a viver.


Al Berto, Diários