sábado, 28 de dezembro de 2013

Excerto de " A Sibila" ( Agustina Bessa Luís)

«É esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos, sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas, os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral. Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.
Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoraram e se deram vida. Vaidade e magnífico conteúdo espiritual foram os seus pólos; equilibrando-se entre eles, percorreu um extremo e outro da terra, venceu e foi vencida, sem que, porém, as suas aspirações mais inquietantes deixassem de ser, no seu íntimo, as mesmas formas incompletas, chave da transfiguração que os homens eternamente tentam moldar e se legam de mão em mão, como um segredo e como uma dúvida.
Eis Germa, que, embalando-se na velha rocking-chair, pensa e pressente, sabendo-se actual relicário desse terrível, extenuante legado de aspiração humana. Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado, no seu cérebro condensaram-se muitas e muitas experiências que não viveu, as negações e afirmações ocupam vastos espaços da sua alma. Ela move-se ritmicamente baloiçando-se naquela sala onde se recolhem em pilhas as maçãs; todo o ar rescende a maçã que suga da própria pele a frescura e dela dessangra o suco que acrescentará a reserva da polpa viva, ainda por todo o Inverno.

Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila. Talvez, porém, o seu tempo seja improdutivo e nefasto, e ela fique de facto silenciosa, porque - quem é ela para ser um pouco mais do que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio? Talvez ela fique de facto imóvel no seu constante, lento ou vertiginoso baloiçar, na casa que fortuitamente habita, e a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir, porque aconteceu ser cedo ou ser tarde, porque não se compreende ou não se crê o bastante, porque se deseja demasiado e isto é todo o destino, porque... porque...» (16 de Janeiro de 1953)

Ode ao Tejo e à memória de Álvaro de Campos


E aqui estou eu, ausente diante desta mesa — e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei e não me lembrei de voltar a cabeça, e saudá-lo deste canto da praça: "Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei. Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi. Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando Pessoa se sentava contigo e os outros invisíveis à sua volta, inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo, tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória, e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados, Tejo que não és da minha infância, mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável, majestade sem par nos monumentos dos homens, imagem muito minha do eterno, porque és real e tens forma, vida, ímpeto, porque tens vida, sobretudo, meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...


Adolfo Casais Monteiro

Pura evasão




Hoje, é um daqueles dias que estando na cidade,me apetece o campo.
As veredas de arbustos lacrimejantes.O caminho mínimo e vertical do caracol subindo o tronco. A cal das casas antigas e dos muros, contornados pelo verde rasteiro das ervas. A expressão paciente dos rostos com rugas. O aroma do vinho novo das adegas. As capelas onde todos meditam e oram, por tudo e por todos com suas torres e sinos, onde se anunciam as horas e as mortes. As brancas escolas primárias com seus quadros negros e números brancos e o cheiro da tinta permanente.
Tenho sede das fontes e açudes com seus murmúrios e recantos de água, da fragilidade dos cântaros, da graciosidade pueril da história de amor campestre e medieval.
Regressar à lengalenga e à mímica outonal, da empa e da poda dos agricultores, abraçados às plantas nas vinhas e pomares.
Segreda-me a saudade do silêncio das noites aldeias, assando batatas doces na magia das larareiras, repetindo excertos de contos e de realidade fantástica e de coragem de que só me lembro o final, "morra homem e fique fama" e a outra, em que alguém jurava que J. aguentara, "meia hora debaixo de água", num qualquer pego.
Apetecem-me as tabernas com seus balcões altos, onde alumiando repousavam a solidez de vidro dos copos de três e a transitoriedade das cascas de tremoço.
Quero despertar outra vez com um canto do galo e avistar na crista da serra, o sol, que a seguir tropeça, refratando a dor da sua luz, numa pedra de quartzo.
Confesso e assino que hoje me apetece o campo e possivelmente se ali estivesse me apetecesse a ti, cidade, porque não descanso, enquanto não encontro refúgio, de mim!

Lisboa, 28 de Dezembro de 2013

Carlos Vieira

Cheguei a casa...

cheguei a casa, pouco depois, soterrei a alma, permaneci imóvel diante dos livros. pensei, há-de haver um poema que me tire daqui, um só poema que me traga a morte com toda a benignidade do mundo.


valter hugo mãe, folclore íntimo

blues da morte de amor


já ninguém morre de amor, eu uma vez 
andei lá perto, estive mesmo quase, 
era um tempo de humores bem sacudidos, 
depressões sincopadas, bem graves, minha querida, 
mas afinal não morri, como se vê, ah, não, 
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz, 
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes, 
ah, sim, pela noite dentro, minha querida. 

a gente sopra e não atina, há um aperto 
no coração, uma tensão no clarinete e 
tão desgraçado o que senti, mas realmente, 
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não, 
eu nunca tive queda para kamikaze, 
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida, 
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber, 
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim. 

há ritmos na rua que vêm de casa em casa, 
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali. 
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha 
no lusco-fusco da canção parar à minha casa, 
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente, 
minha querida, toda a gente do bairro, 
e então murmurarei, a ver fugir a escala 
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

TESEU SEM MINOTAURO



para o Manuel de Freitas

Como em qualquer labirinto, estas esquinas
apenas garantem que não há certezas
na direcção do futuro. Lisboa
nunca foi como em tempos a sonhei.

E contudo venho aqui em peregrinação
habitual, sem tão-pouco saber que lhe pedir.
Indecisões da fé e da sua alavanca diminuta,
à qual desmesuradamente chamamos coração.


Vitor Nogueira

Restaurante

Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória

Só à porta da rua
o tempo reaparece.

em A Oriente, 1ª edição, Lisboa: Editorial Presença, colecção Forma – 38, 1998, p.12