sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Desfruto



Foi
na outra semana
ia pela rua
uma mulher
aproximou-se
e sem qualquer razão
ofereceu-me uma romã
tanta semente
tanto pecado
e apenas recordo
no seu olhar
a pureza
de amêndoa.

Lisboa, 22 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


            Petrus Christus – Retrato de Mulher, por volta de 1470, a óleo em madeira de carvalho


Meia dúzia de poemas à chuva


I

Chove em Lisboa
em silêncio
num esconso qualquer
onde a noite
de uma aranha
teceu o vazio.

II
A luz escorre agora
oleosa
cidade derramada
sobre o alcatrão
e o frio
breves reflexos
de vidas
 em direcção
à  sarjeta.

III
Na passadeira
foi atropelado um peão
dentro de casa
sei do piso escorregadio
distingo o grito estridente
o chiar dos pneus
um cheiro a ferodo
a voar
o chapéu de chuva
um sonho negro
e um corpo
mais morto do que vivo.

IV
Da varanda
cai um pingo de água
um inesperado calafrio.

V
Ergo um dique
A segurar um rio
e nesse laboriosa
tarefa
apelo a todas
as forças que me restam
e aquelas
que não tenho
e foi com essas que o dique
resistiu.


VI
Em Lisboa chovem
também
entre outras coisas
lágrimas de crocodilo
enquanto os retardatários
dão de beber à dor
vomita-se
metáforas medíocres
que sendo verdades
não resistem
às primeiras chuvas
é óbvio
que nem só
as guitarras choram em Lisboa
e que quem anda à chuva molha-se.

Lisboa, 22 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

domingo, 17 de novembro de 2013

Murmurando



Murmúrio
de rios interiores
inventando
margens
e corredores
aflitos
em busca
da paz dos justos
desfazendo
mitos.

Murmúrio
de segredos
inconfessáveis
no ancestral
silêncio
arquivados
escutam-se
insondáveis
desígnios.

Murmúrio
do instável
equilíbrio
das palavras
que ficaram
por dizer
na dolorosa
indecisão
dos tímidos.


Murmúrio
de mães
inquietas na noite
a aguardar
com as mãos vazias
ao colo
o regresso
dos filhos
a qualquer forma
de amor.

Murmúrio
das batalhas
que se avizinham
em que todos
se ferem
ou morremos
um pouco

Murmúrio
agitado
do fim do mês
de sobressaltos
e do breve
interregno
da fome.

Murmúrio
de renovada
esperança
dos doentes
terminais
e dos outros
que já não
suportam
mais a dor.

Murmúrio
dos que iniciam
espinhosas
caminhadas
e do eco
dos seus passos
na areia
de um deserto
sem esperança
rumo
a um Mediterrâneo
qualquer.

Murmúrio
do estrépito
de todas as noites
de cristais
de todas as estrelas
que crescem
amarelas
nas lapelas
e da raiz do medo
que desce
pelo peito
e devora
os corações.

Lisboa, 17 de Novembro de 2013
Carlos Vieira



sábado, 16 de novembro de 2013

Três patos amarelos

Hoje de manhã cedo
um grupo de três patos amarelos
num lago verde
acima do espelho de água estagnada
de cabeça erguida
ou por vezes mergulhada.
À volta do lago verde
à volta de um sonho triste
um grupo de patos amarelos
nada, nada, nada...

Lisboa, 16 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Bacalhau "com todos"




O bacalhau diziam-me ser da Noruega, aliás, cada posta parecia um fiorde branco, agora rodeado de um mar de azeite de Castelo Branco.
Eu era pequeno, as batatas a murro, as cebolas, os dentes de alho e os brócolos eram ilhéus, rochas e recifes, os ovos de codorniz eram bóias de sinalização, os rostos sorridentes e ali e acolá a salsa que tinha apanhado no quintal lá de casa, numa noite de chuva e de neblina e um resfriado pelo meio.
Soltava-se em lascas, o sol da meia-noite, sem espinhas, o bacalhau devia ser “com todos”.
Agora marquei falta ao pai João e ao tio Francisco e outros distraídos, certamente entretidos, a desfiar neves eternas, embevecidos de auroras boreais.
Agora cada vez mais, cada um para seu lado e cada vez menos bacalhau.

Lisboa, 14 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Sem sabor



- Matilde, pelo menos prova os cogumelos.
Não sabem a nada!
- E os venenosos, qual é o sabor?

Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

Poema sem tempo para pensar



- Mãos ao alto, 
isto é um assalto!
E em voz baixa:
- O dinheiro ou a vida!
- Nada de brincadeiras!
Aos poucos entra pelo cano,
por aquele buraco negro.
Sabe lá agora
se era um revólver
ou uma pistola.
Sei apenas
que via vida e a morte
num segundo.

Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira