domingo, 17 de novembro de 2013

Murmurando



Murmúrio
de rios interiores
inventando
margens
e corredores
aflitos
em busca
da paz dos justos
desfazendo
mitos.

Murmúrio
de segredos
inconfessáveis
no ancestral
silêncio
arquivados
escutam-se
insondáveis
desígnios.

Murmúrio
do instável
equilíbrio
das palavras
que ficaram
por dizer
na dolorosa
indecisão
dos tímidos.


Murmúrio
de mães
inquietas na noite
a aguardar
com as mãos vazias
ao colo
o regresso
dos filhos
a qualquer forma
de amor.

Murmúrio
das batalhas
que se avizinham
em que todos
se ferem
ou morremos
um pouco

Murmúrio
agitado
do fim do mês
de sobressaltos
e do breve
interregno
da fome.

Murmúrio
de renovada
esperança
dos doentes
terminais
e dos outros
que já não
suportam
mais a dor.

Murmúrio
dos que iniciam
espinhosas
caminhadas
e do eco
dos seus passos
na areia
de um deserto
sem esperança
rumo
a um Mediterrâneo
qualquer.

Murmúrio
do estrépito
de todas as noites
de cristais
de todas as estrelas
que crescem
amarelas
nas lapelas
e da raiz do medo
que desce
pelo peito
e devora
os corações.

Lisboa, 17 de Novembro de 2013
Carlos Vieira



sábado, 16 de novembro de 2013

Três patos amarelos

Hoje de manhã cedo
um grupo de três patos amarelos
num lago verde
acima do espelho de água estagnada
de cabeça erguida
ou por vezes mergulhada.
À volta do lago verde
à volta de um sonho triste
um grupo de patos amarelos
nada, nada, nada...

Lisboa, 16 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Bacalhau "com todos"




O bacalhau diziam-me ser da Noruega, aliás, cada posta parecia um fiorde branco, agora rodeado de um mar de azeite de Castelo Branco.
Eu era pequeno, as batatas a murro, as cebolas, os dentes de alho e os brócolos eram ilhéus, rochas e recifes, os ovos de codorniz eram bóias de sinalização, os rostos sorridentes e ali e acolá a salsa que tinha apanhado no quintal lá de casa, numa noite de chuva e de neblina e um resfriado pelo meio.
Soltava-se em lascas, o sol da meia-noite, sem espinhas, o bacalhau devia ser “com todos”.
Agora marquei falta ao pai João e ao tio Francisco e outros distraídos, certamente entretidos, a desfiar neves eternas, embevecidos de auroras boreais.
Agora cada vez mais, cada um para seu lado e cada vez menos bacalhau.

Lisboa, 14 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Sem sabor



- Matilde, pelo menos prova os cogumelos.
Não sabem a nada!
- E os venenosos, qual é o sabor?

Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

Poema sem tempo para pensar



- Mãos ao alto, 
isto é um assalto!
E em voz baixa:
- O dinheiro ou a vida!
- Nada de brincadeiras!
Aos poucos entra pelo cano,
por aquele buraco negro.
Sabe lá agora
se era um revólver
ou uma pistola.
Sei apenas
que via vida e a morte
num segundo.

Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

Tangente




Dardejam reflexos 
de um sargo 
pendurado no anzol
a ele se associa
na linha do horizonte
o sol em agonia
compõe a rede
da noite o pescador
desfaz os nós
Sísifo preso à lua
à fronteira da falésia
ao seu limite.

Lisboa, 12 de Novembro de 2013
Carlos Vieira



sábado, 9 de novembro de 2013

Doméstico fulgor



no esmalte do espelho
esfuma-se
o teu sorriso
de bisel

turva-se
o teu rosto
na memória
propaga-se
no espanto
pousas o talher

ao fundo
a porta entreaberta
tu
és o gume
da espada de luz
que sorrateira
se esgueira

és o oriente sôfrego
um espasmo
que antecede
o medo
e o aroma das especiarias
sei-te
flor afogueada
por cima
das ervas

reconheço-te
no sabor
dos espargos selvagens
naquela réstia de luz
crua

pungente
é o teu tronco solar
húmido esplendor
a gotejar
água do banho


corcel de turquesa
que incendeia
os fantasmas
que te espreitam
na penumbra
do corredor

serás a bissetriz visionária
de um coral
contra a blasfémia
e o azedume
na janela
bebes o chá
em contraluz

pantera
na festa da cópula
que progride
furtiva
e que no meu peito
desagua
dilema
que se desafaz
em leito
de espuma e sal
diária
e renovada
luta
sem tréguas
que apazigua.

Lisboa, 9 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

                                                “Mulher sentada em azul” Jean Spitzer