quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Poema sem tempo para pensar
- Mãos ao alto,
isto é um assalto!
E em voz baixa:
- O dinheiro ou a vida!
- Nada de brincadeiras!
Aos poucos entra pelo cano,
por aquele buraco negro.
Sabe lá agora
se era um revólver
ou uma pistola.
Sei apenas
que via vida e a morte
num segundo.
Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
Tangente
Dardejam reflexos
de um sargo
pendurado no anzol
a ele se associa
na linha do horizonte
o sol em agonia
compõe a rede
da noite o pescador
desfaz os nós
Sísifo preso à lua
à fronteira da falésia
ao seu limite.
Lisboa, 12 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
sábado, 9 de novembro de 2013
Doméstico fulgor
no esmalte do espelho
esfuma-se
o teu sorriso
de bisel
turva-se
o teu rosto
na memória
propaga-se
no espanto
pousas o talher
ao fundo
a porta entreaberta
tu
és o gume
da espada de luz
que sorrateira
se esgueira
és o oriente sôfrego
um espasmo
que antecede
o medo
e o aroma das especiarias
sei-te
flor afogueada
por cima
das ervas
reconheço-te
no sabor
dos espargos selvagens
naquela réstia de luz
crua
pungente
é o teu tronco solar
húmido esplendor
a gotejar
água do banho
corcel de turquesa
que incendeia
os fantasmas
que te espreitam
na penumbra
do corredor
serás a bissetriz visionária
de um coral
contra a blasfémia
e o azedume
na janela
bebes o chá
em contraluz
pantera
na festa da cópula
que progride
furtiva
e que no meu peito
desagua
dilema
que se desafaz
em leito
de espuma e sal
diária
e renovada
luta
sem tréguas
que apazigua.
Lisboa, 9 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
“Mulher sentada em azul” Jean Spitzer
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Palavra derradeira
Podia
ser no Outono
e
descortinar-te
a
anunciares
uma
revoada de pássaros
algures
frágil
e inquieta
entre
o fumegar
das
chaminés
e
a ressonância
de
prata das oliveiras
a
partir da reentrância
da
encosta
da
última vez
partia
um
rio de lume
da
tua boca.
Devagar
aproximo-me
a
coberto
do
fogo
e
surpreendo
a
nudez diáfana
das
tuas espáduas
enquanto
crepitam
efémeras
folhas
de eucalipto
na
urgência
das
libações
e
da tua febre
entretanto
uma
tempestade
perpassa
pelo
teu rosto
acomete-me
o
temor
de
te perder.
Prostrar-me-ei
perante
a
tua humanidade
confessarei
as
minhas fragilidades
a
insensatez
da
minha volúpia
e
pusilânime
vacuidade
serei
apenas
mais
uma folha
que
cai
matéria
que
se extingue
e
tu podes ser
apenas
um perfume
que
evola
no
desprendimento
desse
voo e dessa queda
instantes
únicos
de entrega
sopro
de eternidade
o
teu nome
exangue
na
minha boca.
Lisboa, 7 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
Pintura de Dominique Telmon
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Já me faltam as palavras…
Já me faltam as palavras…
Há aquelas que parecem ter dado à costa ou foram resgatadas
entre os escombros de um naufrágio, palavras-búzio, seixos redondos e ninhos de
pássaro, na rocha escarpada, a salvo dos predadores.
Algumas, mastigo-as em seco, agridoces, não me saem, não as
consigo acompanhar ou escrevê-las inteiras, outras, ausentam-se para longe e
quando as procuro constato que as perdi, mesmo, nos cada vez mais raros acessos
de clarividência ou quando não estou submerso no nevoeiro.
No entanto, existem umas tantas que são tão fiéis como
rebanhos, tenho muitas vezes das enxotar de perto de mim, parecem não sobreviver
sem mim. Confesso nunca ter experimentado viver sem elas.
Outras, não me deixam respirar, enchem-nos a boca, entram-nos
pelos olhos adentro, entopem-nos o pensamento, ficamos ali especados,
desamparados, de costas voltadas para o ocaso, quando muito solta-se um
murmúrio, uma interjeição.
Depois, há aquelas palavras que ultrapassam a altura da nossa
vida e que temos dificuldade em nomear e as que podem já ser encaradas, como se
fossem o princípio da decadência, primeiras sementes da nossa morte.
Deitam-se connosco e revelam-nos seus corpos desnudos, sem
nenhuma afeição e pudor, em decúbito dorsal, calam-nos e revolvem-nos as entranhas,
despertam-nos as memórias, os últimos ecos das ondas a perseguirem as gaivotas.
Chamo por elas perdidas nos campos, às voltas com os
pássaros, brilham cor de azeviche como azeitonas depois da chuva, no entanto,
já não me obedecem como quando era criança, em que as inquietava de bichos e
armadilhas.
Agora soletro-as, decomponho-as, ausculto-lhe o rumor que se
desprende débil, como se fosse uma fonte surpreendente, no mármore da parede
deste tempo, mas este meu desvelo parece ter apenas como penhor o seu desprezo e parece-me ouvi-las segredar com desdém “desiste, deixa-nos respirar!”.
4 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
domingo, 3 de novembro de 2013
Sou como o rio
"Terres des deux fleuves" de Anselm Kiefer
Sou como o rio
que se abraça às raízes
na margem
de um desconhecido
caminho.
Sou como o rio
de uma corrente
que não sei
se nasce
dentro ou fora
de mim.
Sou como o rio
onde descanso
e penso
o rouxinol
e a sombra
espero o canto
que é seiva
e ânimo
do salgueiro.
Sou como um rio
que sonha
no horizonte
o côncavo
fulgor
de uma ponte
que floresce.
Sou como o rio
para onde
me inclina
um aroma de maças
em oblíquo
num cesto de verga
desce a vereda
e as primeiras horas
das manhãs.
Sou como o rio
sob o adeus verde
do canavial
que delimita
o sabor
dos pomares
o saber
dos refúgios
e eco
do rumor
dos insectos
e que transborda.
Sou como o rio
onde decifro
as legendas
súbito reflexo
dos peixes
à tona de água
depois
que se perderam
na escuridão
das fendas
e que ficaram cegos
ao desfazerem
os remoinhos
da dúvida
evitando
o vórtice do nada.
Sou como o rio
que incessante
corre
e neste pulsar
de água
a terra negra
treme
o ouro do trigo
oscila
no poente
no bulício do cais
estremece
gente
que leva consigo
aquele
que está perto
e o distante.
Lisboa, 3 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
Espólio
Barba hirsuta
um olhar sorridente
ingénua
uma metade de maçã
onde ainda se notava
o pormenor da incisão
descendente de uns caninos
três maços de tabaco amarfanhados
por um anónimo desespero
meia dúzia de bilhetes de autocarro
de viagens em sentido único
sem regresso
"flyers"
“oferecendo” casas
depois da bolha imobiliária
um jornal sensacionalista de véspera
onde afloram as suas unhas sujas
com muito sangue
de notícias requentadas
uma lata meia vazia
de refrigerante
sem gaz
de antes do mundo
muito provavelmente
um cheiro nauseabundo
e ainda não foi desta vez
que encontrou
um pente
já lá vão uns meses
de cabelo desgrenhado
agora em alegria breve
devora
os restos de um "happy meal"
por cima do candeeiro
protesta um corvo verde
ali no gaveto de um cruzamento
da Av. De Roma com a Av. Do Brasil
apenas um homem
e o espólio
que lhe resta.
Lisboa, 2 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
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