terça-feira, 27 de agosto de 2013

Bailado para uma despedida



A trama
dos gestos desprendidos
o pretexto das tuas pernas
de tesoura
sobre a fragilidade
de um fio imperturbável
numa pirueta
podes ser a face
de uma solidão em pontas
o peso insustentável
de uma lágrima
traindo-te
no murmúrio dos teus lábios
trémulos na emboscada
onde sobrevives
a um silêncio ensurdecedor
puxas o gatilho da tua festa
fulminas
depois acorres
com teu sorriso acolhedor
na curva fechada do caminho
da tua mão agitada
que descreve o arco
onde estremece o corpo
ameaçado por um olhar
de soslaio
vai vai mulher do cabelo solto
que voa
voa despenteado
abre o ângulo morto
da tua dor calada
deixa que o insulto contido
incendeie a paisagem
e o esplendor do teu vulto
depois todo o estertor
do teu corpo
que seja o bailado
do lenço de seda que acena
no cais do mal entendido
aragem mínima
miragem
na minha sede
de querer que sejas mais
que um poema
que se afasta.

Lisboa, 27 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


domingo, 25 de agosto de 2013

Entre o céu e a terra

                                 “Há mais mistérios entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia"
                                   William Shakespeare





Os seus lábios
dizem um crepúsculo
onde se adivinha
a fecundação
dos astros
em órbita
pelos bosques
a fragância da terra
na orla do sangue
o rumor animal.

O olhar é o arado
que sulca
o veneno ocre
da tua pele ávida
campo aberto
onde se ergue
um fulgor de pássaros
com raiz
no grávido silêncio
das sementes
no céu um deserto.
de anil.

Para a fuga
de todas as estrelas
existe o istmo
das tuas ancas
tudo resto é noite
inexplicável
convergência de amoras
um rumo lancinante
de espinhos
incandescentes.

Lisboa, 25 de Agosto de 2008

Carlos Vieira



                                                     Pintura de Marc Chagall

Charlotte Gainsbourg / L'un part l'autre reste


Nós somos ninguém


Medula
raiz da sede
corrente de desejo
pássaro exímio e efémero
teus lábios fruto de asas abertas
a cortina translúcida de um olhar furtivo
transversal à laguna que acende velas nos barcos 
é nebulosa a madrugada das tuas mãos na medula espinal
eu existo dentro de ti e tu serás o meu abismo e coluna vertebral

Lisboa, 22 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

                                    " O beijo dos amantes" Pintura de René Magritte

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

No oásis de Ghouta (Damasco)


Sigo pelas estrada 
pelas vielas 
na periferia de Damasco
olho para a casas de branco esventrado
de onde borbota sangue 
de tijolo
na sua sombra o branco do medo
nos olhos das crianças 
encurraladas
perante o estrelejar
veemente dos mísseis e morteiros
tanto tempo depois do aroma dos figos
e do sabor bíblico das tâmaras 
agora adormecem incrédulos
do meio-dia
entregando-se finalmente à doce
inspiração do gaz “sarin”
nos seus lábios a espuma dos dias
dos que chegam ao fim
e tudo parece descansar em paz.


Lisboa, 22 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

- Ghouta quer dizer oásis em árabe

“Guerra” pintura de Henri-Rousseau

sábado, 17 de agosto de 2013

O sono da razão



Empedernido coração
de penumbra
de onde espreitas
e murmuras palavras
umas gastas
e outras duras.
Nessa caserna
em que escolheste
a tua própria luz
envergonhada
humanidade.
Nesse lugar
de misericórdia
para soldados sós
e desconhecidos
que defendem
o último reduto do silêncio
a recusa do pacto.
Hibernaste
e agora que para ti
não existem baionetas
nem gatilho
nem tempo
sonhas acordar
um novo mundo.

Lisboa, 17 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


                                                     “O Sonho” de Fritz van den Berghe


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Melodia interrompida



Ando de novo 
pelas margens do Lena.
ou pelas margens do Liz
Minha memória 
é esta comoção
afluente de dois rios.
Os teus olhos rasos
pedem uma ponte 
ou um cais.
Os teus pés descalços
e o teu riso límpidos
chapinham no açude
como se fossem peixes 
que de tanto cintilar
ameaçam voo.
Sobre o espelho desta água
que dou caminho
o meu amor 
pode estar
a uma amora de distância.
Os motores de rega
silenciam os rouxinóis.
Enquanto me tentas
de longe
vou escolhendo o calibre
das maçãs.

Lisboa, 16 de Agisto de 2013
Carlos Vieira



                                                       Day on the river. Bill Brandt, 1941