domingo, 25 de agosto de 2013

Nós somos ninguém


Medula
raiz da sede
corrente de desejo
pássaro exímio e efémero
teus lábios fruto de asas abertas
a cortina translúcida de um olhar furtivo
transversal à laguna que acende velas nos barcos 
é nebulosa a madrugada das tuas mãos na medula espinal
eu existo dentro de ti e tu serás o meu abismo e coluna vertebral

Lisboa, 22 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

                                    " O beijo dos amantes" Pintura de René Magritte

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

No oásis de Ghouta (Damasco)


Sigo pelas estrada 
pelas vielas 
na periferia de Damasco
olho para a casas de branco esventrado
de onde borbota sangue 
de tijolo
na sua sombra o branco do medo
nos olhos das crianças 
encurraladas
perante o estrelejar
veemente dos mísseis e morteiros
tanto tempo depois do aroma dos figos
e do sabor bíblico das tâmaras 
agora adormecem incrédulos
do meio-dia
entregando-se finalmente à doce
inspiração do gaz “sarin”
nos seus lábios a espuma dos dias
dos que chegam ao fim
e tudo parece descansar em paz.


Lisboa, 22 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

- Ghouta quer dizer oásis em árabe

“Guerra” pintura de Henri-Rousseau

sábado, 17 de agosto de 2013

O sono da razão



Empedernido coração
de penumbra
de onde espreitas
e murmuras palavras
umas gastas
e outras duras.
Nessa caserna
em que escolheste
a tua própria luz
envergonhada
humanidade.
Nesse lugar
de misericórdia
para soldados sós
e desconhecidos
que defendem
o último reduto do silêncio
a recusa do pacto.
Hibernaste
e agora que para ti
não existem baionetas
nem gatilho
nem tempo
sonhas acordar
um novo mundo.

Lisboa, 17 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


                                                     “O Sonho” de Fritz van den Berghe


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Melodia interrompida



Ando de novo 
pelas margens do Lena.
ou pelas margens do Liz
Minha memória 
é esta comoção
afluente de dois rios.
Os teus olhos rasos
pedem uma ponte 
ou um cais.
Os teus pés descalços
e o teu riso límpidos
chapinham no açude
como se fossem peixes 
que de tanto cintilar
ameaçam voo.
Sobre o espelho desta água
que dou caminho
o meu amor 
pode estar
a uma amora de distância.
Os motores de rega
silenciam os rouxinóis.
Enquanto me tentas
de longe
vou escolhendo o calibre
das maçãs.

Lisboa, 16 de Agisto de 2013
Carlos Vieira



                                                       Day on the river. Bill Brandt, 1941

Última oportunidade




Na eternidade da areia dourada a praia
A espuma efémera das ondas
No contratempo dos teus pés
Onde tropeçam os peixes
Nas conchas e nos búzios
Escondem-se segredos
Acende-se a luz
Uma semana
No paraíso
T1/MP 
750€

Lisboa, 15 de Agosto de 2013
Carlos Vieira



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Dilema




Sigo-te
pelo mundo
como um cão
que não conhece o dono.
Digo-te
no texto interrupto
em escrita torrencial.
Ali te vivo a ausência
o sono e o naufrágio
do mundo.
Só porque te amo
ser fecundo.
Memória que ferve
de palavras obscenas.
Contra o teu corpo
Todo o abandono
trágico dos poemas.

Lisboa, 15 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Palavras em ponto de cruz



Na contraluz
nós
os deuses
seminus da timidez
manuseando
em nós
de ponto de cruz
uma escultura
a linha branca à volta
da tua dura tez
“era uma vez
o que me seduz
na tua voz…”
essa ternura
balbuciada
a sós
na contraluz.

Lisboa, 14 de Agosto de 2013


Carlos Vieira

                                                  Pablo Picasso “Na sombra de uma mulher”