quarta-feira, 24 de julho de 2013

Interlúdio II



Poalha de palavras 
e perfumes 
entre lâminas 
de persianas 
a dissidência do olhar
espreitando 
os biombos de palha
e a firmeza desesperada
levemente curva
dos corpos suados nus
perpendicular
à vigília fresca 
pendente 
dos bambus
ambos atónitos
perante
o musgo do silêncio 
das aranhas
e o húmus de uma luz
ténue que pousa
na sua pele.
.

Lisboa, 24 de Julho de 2013
Carlos Vieira


                                      Imagem de autor desconhecido

terça-feira, 23 de julho de 2013

Portinhola



Soltou-se do trinco
a portinhola
que permitiu 
a fuga do pássaro
a inexistência
ocupa agora a gaiola
por um acaso
deixa quieto o balouço
e o canto da ave
que ouço
suave
é também a luz
à mesma hora
na escola primária
da tarde
e agora
há esse pássaro
perdido lá fora
à solta
sem saber
de uma portinhola
que existe
de um mundo
que passa
por entre as grades
da gaiola.

Lisboa, 23 de Julho de 2013
Carlos Vieira



     

Imagem de autor desconhecido "A luz que nenhuma luz pode prender""

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Richard Galliano & Wynton Marsalis - La Foule

O risco azul...


O Beijo, de Rodin, em releitura de Cornelia Parker, A Distância


O risco azul a ondular sobre a palavra
um avião encarcerado em gaiola de nuvens
e nos seus lábios lívidos
a censura de um beijo de espuma
amortalha o último grito

Lisboa, 22 de Julho de 2013
Carlos Vieira

sábado, 20 de julho de 2013

À boca do forno


  1. Olho para boca negra escancarada do forno
    e estremeço perante as memórias que se cruzam
    do pão da minha mãe e as cinzas do extermínio.

    Lisboa, 20 de Julho de 2013
    Carlos Vieira

Poema para o futuro presente



Submerge
a esperança
a verdade absoluta
de pés descalços
de regresso
às casas de palafita
vou recuperando
do passado
a oxidada ilusão
do reencontro
em puro
silício e bronze
moldo no presente
a precária ponte
a tenda do instante
primordial
forjando essa textura
ancestral
que arrefece
no murmúrio do vento
e o cego testemunho
das estrelas
vou esculpindo
humano o rumo
preso por arames
enfrento
pretextos de pântano
e uma narrativa
emergente
onde não existe futuro.

Lisboa, 20 de Julho de 2013

Carlos Vieira

Elogio da irrelevância


I

Périplo de erro
partícula fosforescente da tentativa
frágil fragmento
que desce sobre o flanco
da dúvida
um argumento para marionetas
a ousar a fraga
de se furtar ao passo em falso
e num golpe de asa fruir a corrente
ser o pássaro hábil
e o intérprete da flecha
também esse êxtase ascendente
de ser fulminante.

II

Colher na viagem as flores de fogo
em propósitos de papoilas
e fósforos
exultando essa frágil alegria
das tentações
que nos consomem
a precariedade
e a memória das planícies
onde se pernoitou
em silêncio.

III

Perplexos pela paisagem
exuberante
de polpa e do sumo
que se vislumbra na fratura
da peça de fruta
que depois se devora
enquanto
se desconhece o incêndio
e a festa
que alastra nos lábios molhados
na orla de um desejo
na periferia de um tempo
onde dorme uma donzela
mansamente
em lençóis de flanela
e das suas pálpebras
florescem manhãs de orvalho.

IV

Por detrás das persianas
a pantomina de uma estranha solidão
de peripécias e percalços
a orquestra de ruídos domésticos
tão comuns à pauta frugal dos párias
na sua porcelana hostil
das palavras
onde uma febre de orquídeas perpassa
e se não me engano
um pasmo de pérolas habita
vizinha triste
envergonhada da vida
que desiste da luz
na órbita da tentativa.

Lisboa, 20 de Julho de 2013
Carlos Vieira



                                          “Shadow people” de autor desconhecido