quinta-feira, 18 de julho de 2013

Carta para o meu tio “Chico”


Partiste sem dizer uma palavra, dizem-me com grande serenidade, nessa tua forma simples de ser e de partir, sempre a mesma cumplicidade e até agora não te disse mais nada. Que posso dizer? Porque para mim sempre estarás por aí, sempre estiveste por aqui.
Já dissemos quase tudo, durante dezenas de viagens entre o Tojal e Lisboa, altas horas da noite, em que te falava ...para não adormeceres, depois de levares os turistas, os emigrantes brasileiros para o Norte. Foram as minhas primeiras grandes viagens e aventuras de menino, nunca mais me esquecerei da bandeira apagada, onde dizia “Livre” sem aspas.
Lembro-me que também não dizias mais nada, depois do Sporting perder, estendias-me o Record e ficávamos a segunda-feira em silêncio ou dizias, tão-somente, que havia outras coisas, muito mais importantes, recordo-me do tempo que levei a acreditar.
Sem dizermos uma palavra, naqueles domingos de Verão na bancada, enquanto o Leonel Miranda e o João Roque e o Joaquim Agostinho subiam a Calçada do Carriche, uma alegria pedalava na nossa alma e não era preciso nem mais uma palavra.
Tudo isto acabava tantas vezes com uma sandes de “corates” ou magnífico prego no Ramiro. Tempos difíceis onde havia tão poucas palavras que corriam à volta das tristes vidas.
Resolveste ir embora sem dizer nada, nunca gostastes de causar muitos incómodos, agora deixaste-nos de novo a bandeira apagada, de uns tempos sombrios, a dizer “Livre”, esse legado da viagem de uma liberdade que não se vende por dinheiro nenhum, que não se proclama, do mundo ser maior do que aquele para onde nos querem empurrar.
Foste-te embora comigo eternamente devedor, talvez até um pouco ingrato mas como poderia alguma vez pagar-te.
Ficou esse gesto que me ensinou o abc de uma liberdade maior, do homem indiscutivelmente bom, daquele que afirma, na rodada solidária “Quem paga, sou eu!”. Do homem que não esquece, de homem que não se esquece.
Esperei alguma distância e tempo para poder falar de ti, de poder dizer-te, mas nunca nos conseguimos afastar o suficiente dos que vivem dentro de nós ou que já são um pouco de nós.
Porque me recordo das tuas inocentes brincadeiras, voltaste a jogar às escondidas ou perdi-te de novo entre a multidão do mercado e do estádio.
Pregaste-me a partida de não poder acompanhar-te nessa última viagem, nessa última corrida.
Um anjo meu amigo e companheiro, meu tio um homem bom e livre, até sempre!

Lisboa, 17 de Julho de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Guerra civil II (continuação)


a mancha de óleo
que alastra perigosamente
em velocidade excessiva
na curva  dos sonhos
que se desvanecem
na berma da estrada
de pernas para o ar
na neblina da madrugada

Lisboa, 15 de Julho de 2013

Carlos Vieira

domingo, 14 de julho de 2013

Viagem quase de circum-navegação



O gume da lâmina de sol e sal breve
sulcando um suave vislumbre
o ardil do olhar antes do teu rosto
enunciado pelo rumor da penumbra
o perfume nos seus ombros de coral
no rastilho subtil de um murmúrio
que se soergue a partir do eloquente
guinar das tuas coxas vibrantes
ávidas de silêncio e de luz submersa
de unhas que vão rasgando na pele
o frémito e demência doutros rumos
no gume da quilha indomável o desejo
separando a carne unindo os mundos.

Lisboa, 14 de Julho de 2013

Carlos Vieira


Um prego...



Um prego,

desde quando 

ali está pendurado

o imenso nada do muro branco?

Nervos de aço

na última fronteira.


Lisboa, 13 de Julho de 2013
Carlos Vieira









sábado, 13 de julho de 2013

❤ Dolores Duran - A Noite do Meu Bem -


Gente de palavras


Gente de palavras


Lugares inóspitos

das palavras elementares

que em tronco nu

se esgueiram pela sombra

ao encontro do silêncio veemente

longe dos olhares

palavras com gente

que no leito do rio ancestral

se banham tímidas e invulgares

desprezados deuses

de qualquer jeito.  

Lisboa, 13 de Julho de 2013

Carlos Vieira

Breve referência aos heróis insones e desconhecidos


 

Por vezes regresso

a esses locais

para onde nos convoca

a insónia

e o desconhecimento

dos mortos

esses heróicos vencedores

de todos os espelhos

onde resistem cicatrizes

na carne e no estanho

perdido por esses caminhos

que nos levam

de novo

aos campos de batalha

que não nos pertenciam

e no entanto

dali saímos vexados

estropiados por vezes

arrastando a derrota das ideias

de uma outra humanidade

vergados à ignomínia

campos de batalha

onde regressamos

apenas para abraçar

esses antepassados da morte inútil

fantasmas das nossas vidas

que erram sonâmbulos

pelas nossas casas vazias de sonhos

tão semelhantes

na nossa condição

ao aproximar-nos apagam-se

e ainda se ouvem murmurar

que não podemos continuar a viver

morrendo em vão

durante o sono.

 

Lisboa, 13 de Julho de 2013

Carlos Vieira



 "Insomnia" por George Grie