sábado, 29 de junho de 2013

Nómada II



Nómada
bebe a lua
com gelo
que tinha adormecido
sob um lençol de água límpida
dentro de si
faz emergir a mais luminosa solidão
bebe pelo gargalo o vinho
que ainda resta
e o crepúsculo de sol ferido
por detrás do verde embaciado
da garrafa
mantém-se de pé
contra toda a ferocidade da sua lucidez
a pão e água
embriagado de vida.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



                             Pintura de Mahi Bine Bine

Nómada



I

Nómada
indocumentado
de barba por fazer
não recomendável
com o IRS por fazer
nunca fez qualquer “check-up”
resume-se a um número estatístico irrelevante
para quem o quer encontrar ele anda por aí
verdade que o acompanha
há algum tempo aquela rouquidão
uma voz cavernosa
e que anda ao contrário dos ponteiros do relógio
para fintar o tempo
para não chegar atrasado ao encontro
que terá mais tarde ou mais cedo
com a morte
e então prestar contas
com juros à taxa Euribor da altura
de quanto lhe custou a liberdade
sem abrigo
de não tratar de toda a “papelada”
da morte adiada.

Lisboa, 29 de junho de 2013
Carlos Vieira



                           Pintura de Jean-Benoît Culot

terça-feira, 25 de junho de 2013

o rouxinol e o rio

o rouxinol não para de cantar
o rio não para de correr

afogou-se o rouxinol
vai devagar agora o rio
tropeçando no corpo
da ave
numa memória
sem canto

Lisboa, 24 de Junho de 2013

Carlos Vieira

lontra

oiço pela tarde de Verão
a história de água que o açude conta
à lontra escorregadia

Lisboa, 24 de Junho de 2013

Carlos Vieira

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Contracorrentes



Truta
lâmina de prata que vence
a corrente
espinho acerado
e canto de pétala
percorre o leito mais profundo
a gruta
onde escondem
a dor do homem

Truta
que por sonhar
a foz do teu peito
nunca desiste
contra à força da água
o apelo do mar
e a suavidade dos limos
e a força bruta

Truta
que a sombra
dos amantes sob as pontes
não convence
porque é da sua natureza
ir até à nascente
a viagem cumprir
a seguir morrer em paz
e assim
poder ficar à escuta
no cume da montanha

Truta
que ali deixa o seu legado
mesmo se coberto pela neve
pelo esquecimento
peixe e pensamento que resiste
que não se deixa levar
hiberna mas persiste
que mesmo sabendo
que vai perder
vai á luta.

Lisboa, 24 de Junho de 2013

Carlos Vieira

sábado, 22 de junho de 2013

A besta


 

 

Pantera

cor de azeviche

dilacera

entre mandíbulas

o crepúsculo

acendem-se

nos seus olhos

inquisidoras

línguas de fogo

dentro de nós

vigiam-se

o apelo da selva

da fera

agora saciado

e o livre arbítrio

do homem

que desespera

encurralado.

 

Lisboa, 22 de Junho de 2013

Carlos Vieira

 


quarta-feira, 19 de junho de 2013

Nas tuas mãos uma paisagem glacial



mãos pálidas da mulher de branco
no Ártico da alma
a insistir na mesma tecla preta

primeiro jogavam as brancas
cintilante era a garra do urso polar
naquela noite de breu

sofrem de “delirium tremens”
as mãos de rainha perdem a cor e a fé
atacada por um bispo negro

olhava-te perplexo enquanto a neve caía
a seus pés as palavras
eram pedras de gelo que tombavam redondas

o seu sorriso
atravessava a grande superfície gelada
flor de viagem e cinzel do tempo

no abandono os cães ganiam
o cavalo branco de freio nos dentes
o Inverno era muito longo e a fome era negra

mãos suadas voltam a atacar o piano à deriva
coração que encalhou
no luar derramado

Lisboa, 19 de Junho de 2013
Carlos Vieira


“Choice is in your hands”
Imagem de autor desconhecido