terça-feira, 30 de abril de 2013

Herbário IV - Era uma vez


Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Era uma vez na janela
agora deserta 
o ágil e ardente amor
de Julieta e  de Romeu
pela noite fora.

Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Era o madrigal
de amor antigo
agora no altar vazio de um Deus
que não sendo para ali chamado
cedo se foi embora.
Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Cresceu cego e sôfrego
esse amor imortal
que a raíz das pedras
ainda chora
sem razão a toda a hora.

Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Era uma vez
as armadilhas do coração
as heras e os muros
o veneno letal
o amor de agora e o antigo
que o verdete devora
esse punhal do tempo.
.


Lisboa, 30 de Abril de 2013

Carlos Vieira
 

                                                         Varanda da Casa da Família Capuleto, em Verona

domingo, 28 de abril de 2013

Herbário III - Urzente


 

 

Urze

sobre o árido planalto

poema

que urde a terra

verso

quebrado

incauto

que se solta no sono aflito

estremunhado

iluminando o granito

de um destino.

 

 

Urze

que mordes a sílaba

e o pó do trilho antigo

e do pensamento

esse brejo

onde brota o silêncio

de um grito

na paisagem

sobre o esquecimento

e a irrelevância

da morte

na brisa voam em bando

os cálices púrpura.

 

Urze

onde urge

e rimam

num mesmo tempo

a fragilidade

e a resiliência

onde ancestral

pulsam o sangue humano

e um punhal

e cantos

de aves de passagem

num sonho

de novo horizontes.

 

Lisboa, 28 de Abril de 2013

Carlos Vieira

 


                                                      “Heather Weather” por Neil McBride

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Herbário I - A efémera beleza e a razão eterna dos cravos



O seu perfume exortava
perdurava intenso nas narinas
afiando o gume agridoce
das palavras que antes eram
apenas e só murmúrios
as plantas apresentavam-se
num silêncio perturbado
animadas da ousadia púrpura
abandonaram os jardins
o sorrisos cínico das janelas
eram eloquência do sangue
que não se quis derramado
sobre a véspera incólume
erguiam seu precário sonho
raíz na alma do cano da G3
o júbilo violento que inebria
frescura carmim que crescia
pelo país erguido em pétalas 
numa suave firmeza vegetal
um prelúdio de chuva fina
prenhe da esperança pueril
de homens duros e antigos
que nunca tinham chorado
agora o cristal das lágrimas
de raiva e amor incontido
lavando perplexos rostos
de penas e tristeza lavrados
calando baionetas no coração
esplendor de subtil clemência
de um gesto que faz renascer
na memória a beleza efémera
e a razão eterna dos cravos.

Lisboa, 26 de Abril de 2013
Carlos Vieira
 

                                   “Mulher em Verde com um Cravo” por Henri Matisse

terça-feira, 23 de abril de 2013

Herbário II


Hoje
é dia 23 de Abril de 2013
fica consignado
que fui pelo campo fora
ali encontrei
uma “serralha” banal
desconheço
o seu nome científico
dela faz parte
uma flor amarela
o leite da seiva
derramado
na paisagem
em apenso
um coelho bravo
que se delicia com ela
poema inquieto
de pelo branco
rimando
no baldio abandonado
das memórias
que nesta data
e nesta função
de manga de alpaca
fica arquivado

neste país

de novo rural.
Lisboa, 23 de Abril de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Circunstância



O cão vadio
ladra à lua
imperturbável
morde as canelas
ao retardatário
que corre
pela alagada rua
do leite do luar
ali desagua
seu fio de sangue
que extravasa
de ferida solidão
tão pálida e nua
ali vai afogar
cíclicas dores
neste rio de ocasião
onde devagar
o cão vadio
e o retardatário
enfim sós
bebem o luar

Lisboa, 23 de Abril de 2013
Carlos Vieira

                                                  "Man, dog and moon" de Colin Dunbar

quarta-feira, 17 de abril de 2013

O Banho de Psique


No início da sede
ouve o veredito do teu corpo
que escorre
por dentro de si
a memória do chuveiro
a inundar uma manhã
de água cristalina
e de nevoeiro
tu outra vez
um desconhecido país
onde irrompe
a paisagem
à flor da tua pele
estandarte do teu torso nu
sinuoso e inteiro
das tuas mãos brancas
delicadas
a ensaboar a imaginação
que consome
o seu corpo verdadeiro
percorres
os lugares recônditos
onde enlouquece
o coração enclausurado
descreve-te
de olhos fechados
acredita em ti e não te vê
o teu perfume
envolvente
os teus lábios suspensos
flores frementes
a sua pele húmida
destilando
a suave alquimia do despertar
a volúpia
das tempestades
a demência do prazer
o gesto mais limpo
na hora do banho
em que procuravas felina
a palavra mais pura
a lâmina mordendo a carne
depois das águas tranquilas
a vertigem
de um pensamento subterrâneo
o segredo que te possui
no esmalte da louça
onde deixaste a toalha
caída do abismo
dos teus ombros
onde iam pousar libertinas
as aves que o inebriam
sobrevive ao ritmo
da tua desnuda
existência
ficou cego
de tanto olhar o sol.

Lisboa, 17 de Abril de 2013
Carlos Vieira

 

                                       “The Bath of Psyche” pintura de Lord Leighton Frederic

domingo, 14 de abril de 2013

Sonho acordado


 

 

“A lenda diz que quando não consegues dormir de noite é porque estás acordado no sonho de alguém”

                            

Olho para ti

enquanto dormes

aguardo que na doçura

da tua voz

haja um novo

princípio do mundo

uma nova esperança

eis-me aqui

na tua história

de bela adormecida

peixe lúbrico

que nada e respira

nos teus lábios

no leito dos teus sonhos

apenas para te ver dormir

acordo sempre

mais cedo

a seguir

olho por ti

ora descubro a graça subtil

ora sou vencido

pelo deslumbramento

agora

já posso ir à minha vida

ou à mina morte

ali estás

na ilusão de me estares entregue

no entanto

ainda erras pela manhã

pelas veredas

a caminho da poesia exacta

que exulta

pelo fim da noite

não sei por onde andas

contudo

ali estás disponível

como se fosses

uma onda de mar

que veio comigo

para casa

e a qualquer momento

me submerge

ou me leva a navegar

mesmo quando dormes

sabes

que estou à tua espera

como uma árvore

grávida de pássaros

à janela

de uma qualquer primavera

de um sonho acordado.

 

 

Lisboa, 14 de Abril de 2013

Carlos Vieira