sábado, 26 de janeiro de 2013

Habeas Corpus VI


 

 

Expulsaram-te

do país sonhado

que pensavas ser teu

agora de braço dado

vais com o vazio

ao longo de uma indefinível

fronteira de solidão

agora atravessas

esse território

envolta do medo apátrida

carregando

esse destino inseparável

do que fomos

por essa estrada

que só tu conheces

vulto ávido de encruzilhadas

ali onde não és de ninguém

só ao nada pertences

tão despojada

que nem a ti te possuis.

 

Lisboa, 26 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 

                                                           Imagem de autor desconhecido

Habeas Corpus IX


 

 

Circunscrito

no silêncio vespertino

da normalidade

fito a serena transparência

de um pisa papéis

senhor de si

do seu lugar

da comoção imóvel

das lágrimas de vidro

gela na sua mão

depois na sua alma

como se fosse

uma grande lágrima

nesta noite

com o peso exacto

da sua solidão

indizível.
 

Lisboa, 25 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Habeas Corpus V

Era uma vez
um maldito peixe
devorando as margens
rindo-se da casa em ruínas
onde afogueada
sobrevives.

Era uma vez
o triste enredo da carne
na tímida cortina
onde te escondes
do desejo
que te consome.

Era uma vez
em que subias
vagamente  de sandálias
e tropeçaste
fazendo  entornar
a madrugada.

Era uma vez
tu e a tua fragância
fluorescente
surpreendendo a alameda
cercada
por um triângulo amoroso.

Era uma vez
em que ias regressar  saciada
de quase nada
estremecendo na penumbra
de quase tudo
apagada
num curto circuito .

Era uma vez
uma sardinha
de melancolia prateada
suavemente
pousada sobre a bondade
de um pão de milho
e tu esfomeada.

Era uma vez
em que te bastava
o benefício
de viveres à margem
para em troca
entregares todo o teu amor
desesperado
às piranhas mundo
a benefício de inventário.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

                                                    “ Alone” por  Lizzie Borden

domingo, 20 de janeiro de 2013

Habeas Corpus IV



Tendo sido vetada pela autoridade competente

a entrada no país

corre agora dentro de si toda a sofreguidão do rio

em busca da raiz

das palavras

barcos que descem intrépidos até à foz

desfazendo nós

das palavras

temerosas da voracidade dos peixes e quedas de água

os remos afagam a mágoa

das palavras

que se afogam em formulários

preenchendo a sua vaga naturalidade

palavras ansiando

represas e a emoção da língua

vencem a bruma

as suas mãos de uma brancura fulgurante

sem palavras

reconheces o diálogo das pedras entre a espuma

que pode ser o teu país

em silêncio

porque as palavras podem ser usadas contra si

o fulgor de arestas do teu olhar

a soletrar

os contornos da ausência

da tua vida

à deriva

do teu corpo a divagar

sem pestanejar

sulcando-o um pequeno fio de sangue

visando

o passaporte para uma outra vida

outro país

definitivamente apátrida.


Lisboa, 20 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

                                                         Pintura de Alfredo Aquino

sábado, 19 de janeiro de 2013

Habeas Corpus III


 

 

Interdito

era o gesto destemido

que se cruzava em pleno voo

no interlúdio de um olhar

desencontrado

o pássaro assustado

e o rumor da seiva

de um  jardim proibido

na persistência da corola

que se oferece silente

ao ligeiro insecto

que laborioso

decifra a senha de acesso

ao coração do tempo

um búzio de fogo

na tua mão

 intrépido.

 

Lisboa, 19 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
                                                             Imagem encontrada em Zazzle

Habeas Corpus II


 

Delimitada

a luz sobre um pensamento

sobre as ideias fixas

depois que a ave do desejo

traiu a fuga mais ousada

refugiando-se num corpo ancorado

adivinha-se na corrente de ar

da gruta ancestral

uma luz ao fundo do túnel

germinam as asas

no húmus da sombra

que te libertam da penitência

e pacientemente

teces a alegria silenciosa

de organizar o caos

 

Lisboa, 19 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
 

 
"Organizing Chaos" no site Nikinotes
 

 

 
 

 

Habeas corpus

 
 
 
 
 
I
Proscrito
nunca na sua vida
lhe foi permitido entrar
no reino vegetal da palavra escrita
apenas de uma flor imaginada
se solta o perfume
de um rosto antigo
e uma ilha desconhecida
no rumo de um navio
enquanto na sua boca
uma língua morta apodrecia
enquanto os pássaros
que fizeram ninho no seu peito
lhe percorreram as artérias
e atravessaram a paisagem
de grades de ferro fundido
que ganharam raízes
dentro de si.
 
Lisboa, 19 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira
 
 
“Pomba da Paz” de Pablo Picasso