segunda-feira, 26 de novembro de 2012
“A minha quinta”
Admiro ainda a profusão dos telhados de vermelho, do rosa velho, atacados ali e acolá
pela ferocidade verde das heras. Este conjunto de edifícios, á beira-mar de um serôdio
romantismo, onde outros jazem, nós repousamos dez minutos.
Depois a direito, o nu prateado das árvores mutiladas debatendo a nossa fragilidade
nas alturas, onde sinos voltam a tocar, nunca saberemos porque se agitam.
Olho para a tristeza dos jardins e das estátuas, mantendo as distâncias, nunca se
pronunciando.
Prossegue a inutilidade dos peixes dos lagos e dos repuxos, embriagados de água,
cercados do mar amarelo das folhas de Outono que transformam a queda numa dança
improvisada.
Os muros caiados andam à sua volta desenvolvendo o bolor ou a patine da história,
conforme os gostos.
Depois nós pasmados, fechados a ferrolho nesta quinta à oito séculos, vegetando na nossa
tolerância, neste desconforto, onde os gatos nos roçam nas pernas amaciando o pensamento
e os cães vêm mijar.
Tudo isto faz menos sentido que o coice de um cavalo, a errância dos pássaros ou a amargura
das laranjas, pois todos teimam em iluminar a estação, a nos fazer ver estrelas e pequenas
assombrações, por mim, vou sobrevivendo à veemência agridoce das palavras.
Não havendo mais nada que enaltecer vou zurzindo na coerência das cores e dos gestos, nesta
quinta de família “à beira mar plantada”.
Lisboa, 26 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
sábado, 24 de novembro de 2012
Paisagem interior
Entre a mulher e a realidade
apenas a espessura do vidro
onde agora escorre toldada
sua imagem na miríade húmida
da água da chuva e do vento
por osmose as suas lágrimas
descem saciando a sua sede
de circunscrita flor interior
do lado de fora na floreira
murcham folhas no Outono
corre ofegante o moinho
espelhando-te revoltada flor
teu solitário coração que bate
solidário lá fora furiosamente.
Lisboa, 24 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
do lado de fora na floreira
murcham folhas no Outono
corre ofegante o moinho
espelhando-te revoltada flor
teu solitário coração que bate
solidário lá fora furiosamente.
Lisboa, 24 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
O que me emociona...
o que me emociona ao escrever é lançar a rede
pela manhã pescar as já tão parcas palavras
deixo que me seduzam, relendo escuto, sopeso
infinito desejo do cristal das que me calam
enquanto no meu peito presas outras clamam
são sílabas de luz que anseiam do rio o leito
outras peixes que exaltam no açude do poema
o fulgor de um sonho de foz em escamas e sal
Lisboa, 21 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
China
lonely planet escape, cormorant fisherman Huang on the Yuolong River
Autor
desconhecido
sexta-feira, 23 de novembro de 2012
Percepção
Percepção
Não reconheces mais este lugar
se tu própria aqui te desconheces
como te poderias encontrar
aliás tem sido essa a tua sina
pretexto para te abandonares
na busca da sombra que amadureces
vendo-te chegar mudas de página
mudas de cor e mergulhas na neblina
o que te entristece nesta selva urbana
não é ser fria é ser com os frágeis desumana
é a escassez e a
brevidade dos momentos
dos sorriso que se rasgam no teu rosto
é uma ausência suave que enlouquece
se somos a cicatriz em que ficamos
ou o tumulto de onde partimos a contragosto
isso são meros sinais dos tempos
Lisboa, 21 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
domingo, 18 de novembro de 2012
Álibi
Naquele preciso momento
na perplexidade
na indiferença
do golpe
não era ele que estava ali
quando a lâmina encetou
o seu vibrante caminho
sem retorno
e aflorou o coração
após penetrar pela floresta
do interstício vertebral
era impossível ser ele
quando na boca soçobrou
a derradeira palavra
exclamando a solidão
e o olhar se despediu da Terra
fitando-o atónito
perante a perfídia
não poderia ser ele
que estava para lá do tempo
antes das casas e do código postal
dos números de polícia
dos cidadãos e dos deuses
desses de todos os dias
que cantam e amam
uns por cima dos outros
ou lado a lado
ele era agora
aquela arma branca
discurso e flor ensanguentada
sobre a mesa
e inútil de novo
ele era agora
as amáveis ruínas
que sobram na luz da tarde
esse puro punhal
que algures
nos torna no mínimo cúmplices
nessa morte fulminante e sem motivo
de abreviar o mundo
aos frágeis heróis
pelos cobardes do dia a dia
Lisboa, 18 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
sábado, 17 de novembro de 2012
1. Interlúdios
I
Entre a folhagem
do teu olhar
as suas mãos
eram pássaros
que ali iam
pernoitar
II
Os teus caracóis
de ouro
a desaguar
nos ombros
a luz incrédula
do farol
e o abraço azul
do mar
no alabastro
do teu pescoço.
III
O sabor
a sal e a suor
nos teus seios
a arfar
na penumbra
o cristal puro
do teu rosto
tranquilo
e a breve
tristeza
das palavras
por dizer.
Lisboa, 17 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
Pintura de Marc Chagall
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Versos a um amor desconhecido
Percorreu a espiral
do seu torso
e perdeu-se
para sempre
nunca se saberá
quem foi.
Contorna o veludo
da sua pele
entre miragens
e alucinações
e deixou de saber
quem é.
À flor dos lábios
inventou um alfabeto
só para eles
nesse labirinto
de emoções
desconhecia-se
o porquê.
Entre dentes
o rumor
acutilante das palavras
que murmurou,
até quando?
Ficou cego
no arco tenso
das suas pernas
e não sabia morse
ficou para sempre
sequestrado,
entregue a si próprio.
A sua alegria
era a dele
o sol de inverno
era dele
as suas lágrimas
eram suas
correram desejadas
não se sabe,
por onde
nem para onde.
O sexo sobrevoava
o tempo lento do corpo
era um relógio de água
que dava corda ao pensamento
à raiz do fogo
às crinas do vento,
ninguém sabia
o que faziam ali?
Pediam as suas ancas
o rumo estreito
das suas mãos
acalmando as correntes
os espasmos da pélvis
fechavam-se seus olhos
tudo tinha acabado
havia tempo
nenhum dos dois sabia
os termos do armistício.
Lisboa, 16 de Novembro de 2012
Carlos
Vieira
Foto: 14 de Agosto de 1945: Um marinheiro americano beija uma
enfermeira para celebrar o fim da II Guerra Mundial. A enfermeira, Edith Shain,
morreu em 23 de Junho de 2010, com 91 anos.
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