quarta-feira, 20 de junho de 2012
domingo, 17 de junho de 2012
Paisagem urbana do amor imaterial
o semáforo
essa árvore cansada de cores
surpreendente gaiola de pássaros onde te surpreendi
os néones
são pássaros na demência da luz
são palavras inquietas e sôfregas na noite dos nossos corpos nus
pela alameda
nossa rua larga onde as árvores se encontram
para os amantes malditos se esconderem e se beijarem
a esplanada onde te vi
era um navio ancorado onde os homens
fingiam aventuras e viagens à volta de um café com ou sem açúcar
a zebra
animal do asfalto
leva-me depressa até ao outro lado do sonho
no beco
onde eras a vítima que se encontrava cercada
e nessa altura abria a porta para que pudesses entrar no poema
eis o largo
onde podemos ver tudo e todos nos podem ver
todos a desejam, todos a podem roubar, depois da minha espada
no chafariz
água fresca e sede antiga
corre na torneira onde se lava as mãos e refrescam as ternas memórias
pelo parque
a raiva e a tristeza pedalam
passam por nós, cabisbaixos, na reviravolta dos guiadores das bicicletas
vais de metro
onde todos cheiram o óleo queimado nas travessas
e sentes, agora mais perto de ti, o coração que está ao teu lado
toca a campainha
insiste para o rés do chão da tua amada
do outro lado, a sua voz eléctrica ou o silêncio ensurdecedor
nas sete colinas
estávamos exaustos no tropel do amor
dos sonhos bêbedos de luz e o cavalo levava o freio nos dentes
paragem do 15
as bátegas de água fustigavam o acrílico
sobre a memória que resta do teu rosto escorre a água da chuva
no passeio
mudei para o outro lado
naquele dia não sei se me trocaste as voltas ou as regras do jogo
os bancos de jardim
são imperfeitos esqueletos de árvores
onde se sentam no princípio e no fim da vida, eternos, o amor e a solidão em osso
ia à farmácia
ficava atónito de tantos cheiros e esquecia-me dos recados
encantado da arrumação dos remédios e da resistência do coração da minha avó
as sargetas
eram bocas de palavras putrefactas
pode-se ouvir além do rumor do esgoto, o rio no reflexo de prata dos peixes
no sinal de trânsito
tu esperas anoréxica, imóvel e erecta
não tens que dizer nada, irei contigo, tu és o meu sentido único e proibido
o marco de correio
onde deixei a carta, poço de segredos e de saudades
as palavras e os endereços acotovelam-se na sua urgência de partir
na cabine telefónica
as minhas mãos estrangulam o fio do ausculta(dor)
do outro lado contorcendo-se na cama, tu mordes os lábios, o gosto do teu sangue
da torre mais alta
olhas a extensão da minha cidade
ali está a meus pés, quase tudo o que juntei para te dar
do zoo
todos os animais passaram perto da minha infância
vou em cima de um elefante ou há um fosso na minha memória
o liceu
esse intervalo da alegria que me confunde
de todas as perguntas e testes, de todo o amor interrompido pela campainha
aquele lago
era um relógio parado na sombra do tempo
reparo na profundidade do teu olhar e remo depressa para chegar a terra firme
no jardim
de escorregas e baloiços as crianças jogavam às escondidas
naquele tempo os adultos viviam às escondidas, não eram para brincadeiras
naquele candeeiro
céptico tutor das trevas
apaga-se o espectro de um vagabundo pois nele triunfa a tua luz interior
vieste comigo dos museus
tu eras todas aquelas belas mulheres que trazias
Impressionava-me a abundância da sua carne e o segredo macio da sua pele
vou ao café
bebo tranquilo as amargas notícias do jornal
pus demasiado açúcar depois de ler perdidamente o teu olhar
água furtada
é um sonho recorrente
o vórtice de telhados, onde, ao teu colo, podia ser eu o gato sentado que sorri
aeroporto
tu, as filas do check-in e os aviões na placa
e a merda de vida, de quem tem de, literalmente, voar entre uma coisa e outra
desço o elevador
venho do firmamento e das nuvens
deixei a cama desfeita, nos contornos dos lençóis paira teu perfume
na biblioteca
andava há dias a ler o mesmo livro
as tuas pernas passavam-me uma rasteira, a cada virar de página
vejo-te na ponte
o seu tabuleiro e seus pilares, pintados de vermelho de segurar a lua
velas brancas sulcando no rio azul, tu dormes e eu já não encontro posição
nas urgências do hospital
foram tantas as noites brancas e as batas brancas
olhavas para os resultados do ECG e para prova de esforço e ficavas pálida
cais
de onde nunca parti
por mais que os teus pensamentos mais chegados, me deixem saudades
eléctrico
esse surreal meio de transporte
no cruzar dos fios e no chiar das rodas, nos carris faiscava o nosso amor em curto-circuito
ambulância
vai aflita pela rua acima
apaga por breves momentos a solidão de todos os transeuntes, por instantes deixei-te ir
meu castelo
entre tuas ameias pouso o arco e as flechas
estou sitiado há vários dias da beleza dos teus seios, desse doce veneno, nunca me canso
no peito uma gaivota
amante dos abismos e do silêncio
sobre o terramoto da cidade e da tua ausência a fúlgida elipse do seu voo
o azulejo
na parede do vazio é uma secreta flor e um beijo húmido
no chão do pátio os mosaicos osculam teus pés que derrotaram o deserto
Lisboa, 17 de Junho de 2012
Carlos Vieira
sábado, 16 de junho de 2012
a vida por um tri(s)te
a vida por um tri(s)te
regressa à página vazia
a esse torpor húmido
de uma primavera sem flores
à asa suspensa
no aparo do medo
dentro de si procura a palavra
a raiz primordial
rastilho para o grande “boom”
do princípio de um novo mundo
as sôfregas mãos
presas nessa hidráulica
que liberta a corrente
da humanidade
que faz cair o pano
e o atordoa do espanto das aves
fósforo que acende o sorriso no olhar
o dedo a florir no gatilho
espreitas no longo cano negro da vida
o dourado projéctil
que tornaria vermelha a solidão
sem um pingo de tinta no coração
ele ali está exangue
depois da noite em branco
de regresso ao “felizmente à luar”
da última folha
ao deve e haver do amor e da morte
às estatísticas
de uma maior esperança de vida
Lisboa, 16 de Junho de 2012
Carlos Vieira
“La Page Blanche” René Magritte
Extrato de texto de Philippe Sollers
"Num só Inverno já foram recenceadas mais de cem mil gaivotas pequenas n Île-de-France. Vindas do Norte (Países Baixos, Alemanha, Báltico, Bélgica), riem no céu de Paris. damos com elas nos lagos dos bosques de Vincennes ou de Boulogne, ou ainda nos Buttes-Chaumont. Dormem juntas, às centenas, na superfície aquática. A comida espera-as nos sacos plásticos que forram as latas de lixo das ruas ou do...s pátios dos prédios. Os seus territórios predilectos são os terraços e os espaços saibrados, mas também os aeroportos onde se podem divertir a morrer nos reactores dos aviões, armadas em autênticas terroristas. Aqui na ilha, muitas vezes voam em círculos e aos pares em torno de nós, planam, parecem defender o horizonte, por vezes tentam incursões na erva quando faz muito calor ou o temporal ameaça. Por um instante contemplo a covinha que tens a cima da bochecha esquerda, mão encostada à têmpora direita, a orelha despegada comestível, os dedos, o nariz fino. A questão que reaparece é a da "própria pureza". Isso, não esperava eu. Tu escutas, falas, voltas a escutar com ar sério, sorris, és uma paisagem mutante, passas, a mão pelo cabelo curto, o indicador volta-te um pouco à orelha, ao lóbulo da orelha, o polegar aflora-te a face, tornas-te frágil, mas não, eis-te de novo com força e fulgor. Levantas-te, vais procurar cerejas, que palavra magnífica, cereja, sem falar daquelas que esta induz, morango, framboesa, amora, ameixa, azeitona, mirtilo. Outras tantas sílabas para comer. Sentas-te de novo, atiras com os caroços para as ervas, suspiras, atas outra vez o lenço negro ao pescoço, vejo-te melhor uma das veias, bocejas, um gestozinho da mão direita em frente dos lábios. Dizes que tens sono, que vais dormir, deixas atrás de ti a tarde à contemplação vazia."
A ESTRELA DOS AMANTES
PHILIPPE SOLLERS
A ESTRELA DOS AMANTES
PHILIPPE SOLLERS
sexta-feira, 15 de junho de 2012
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