domingo, 17 de junho de 2012

Paisagem urbana do amor imaterial


o semáforo

essa árvore cansada de cores

surpreendente gaiola de pássaros onde te surpreendi



os néones

são pássaros na demência da luz

são palavras inquietas e sôfregas na noite dos nossos corpos nus



pela alameda

nossa rua larga onde as árvores se encontram

para os amantes  malditos se esconderem e se beijarem



a esplanada onde te vi

era um navio ancorado onde os homens

fingiam aventuras e viagens à volta de um café com ou sem açúcar



a zebra

animal do asfalto

leva-me depressa até ao outro lado do sonho



no beco

onde eras a vítima que se encontrava cercada

e nessa altura abria a porta para que pudesses entrar no poema



eis o largo

onde podemos ver tudo e todos nos podem ver

todos a desejam, todos a podem roubar, depois da minha espada



no chafariz

água fresca e sede antiga

corre na torneira onde se lava as mãos e refrescam as ternas memórias



pelo parque

a raiva e a tristeza pedalam

passam por nós, cabisbaixos, na reviravolta dos guiadores das bicicletas



vais de metro

onde todos cheiram o óleo queimado nas travessas

e sentes, agora mais perto de ti, o coração que está ao teu lado



toca a campainha

insiste para o rés do chão da tua amada

do outro lado, a sua voz eléctrica ou o silêncio ensurdecedor



nas sete colinas

estávamos exaustos no tropel do amor

dos sonhos bêbedos de luz e o cavalo levava o freio nos dentes



paragem do 15

as bátegas de água fustigavam o acrílico

sobre a memória que resta do teu rosto escorre a água da chuva



no passeio

mudei para o outro lado

naquele dia não sei se me trocaste as voltas ou as regras do jogo



os bancos de jardim

são imperfeitos esqueletos de árvores

onde se sentam no princípio e no fim da vida, eternos, o amor e a solidão em osso



ia à farmácia

ficava atónito de tantos cheiros  e esquecia-me dos recados  

encantado da arrumação dos remédios e da resistência do coração da minha avó



as sargetas

eram bocas de palavras putrefactas

pode-se ouvir além do rumor do esgoto, o rio no reflexo de prata dos peixes



no sinal de trânsito

tu esperas anoréxica, imóvel e erecta

não tens que dizer nada, irei contigo, tu és o meu sentido único e proibido



o marco de correio

onde deixei a carta, poço de segredos e de saudades

as palavras e os endereços acotovelam-se na sua urgência de partir



na cabine telefónica

as minhas mãos estrangulam o fio do ausculta(dor)

do outro lado contorcendo-se na cama, tu mordes os lábios, o gosto do teu sangue



da torre mais alta

olhas a extensão da minha cidade

ali está a meus pés, quase tudo o que juntei para te dar



do zoo

todos os animais passaram perto da minha infância

vou em cima de um elefante ou há um fosso na minha memória



o liceu

esse intervalo da alegria que me confunde

de todas as perguntas e testes, de todo o amor  interrompido pela campainha



aquele lago

era um relógio parado na sombra do tempo

reparo na profundidade do teu olhar e remo depressa para chegar a terra firme



no jardim

de escorregas e baloiços as crianças jogavam às escondidas

naquele tempo os adultos viviam às escondidas, não eram para brincadeiras



naquele candeeiro

céptico tutor das trevas

apaga-se o espectro de um vagabundo pois nele triunfa a tua luz interior



vieste comigo dos museus

tu eras todas aquelas belas mulheres que trazias

Impressionava-me a abundância da sua carne e o segredo macio da sua pele



vou ao café

bebo tranquilo as amargas notícias do jornal

pus demasiado açúcar depois de ler perdidamente o teu olhar



água furtada

é um sonho recorrente

o vórtice de telhados, onde, ao teu colo, podia ser eu o gato sentado que sorri



aeroporto

tu, as filas do check-in e os aviões na placa

e a merda de vida, de quem tem de, literalmente, voar entre uma coisa e outra



desço o elevador

venho do firmamento e das nuvens

deixei a cama desfeita, nos contornos dos lençóis paira teu perfume



na biblioteca

andava há dias a ler o mesmo livro

as tuas pernas passavam-me uma rasteira, a cada virar de página



vejo-te na ponte

o seu tabuleiro e seus pilares, pintados de vermelho de segurar a lua

velas brancas sulcando no rio azul, tu dormes e eu já não encontro posição



nas urgências do hospital

foram tantas as noites brancas e as batas brancas

olhavas para os resultados do ECG e para prova de esforço  e ficavas pálida



cais

de onde nunca parti

por mais que os teus pensamentos mais chegados, me deixem saudades



eléctrico

esse surreal meio de transporte

no cruzar dos fios e no chiar das rodas, nos carris faiscava o nosso amor em curto-circuito



ambulância

vai aflita pela rua acima

apaga por breves momentos a solidão de todos os transeuntes, por instantes deixei-te ir



meu castelo

entre tuas ameias pouso o arco e as flechas

estou sitiado há vários dias da beleza dos teus seios, desse doce veneno, nunca me canso



no peito uma gaivota

amante dos abismos e do silêncio

sobre o terramoto da cidade e da tua ausência a fúlgida elipse do seu voo



o azulejo

na parede do vazio é uma secreta flor e um beijo húmido

no chão do pátio os mosaicos osculam teus pés que derrotaram o deserto



Lisboa, 17 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                                           Pintura de Nadir Afonso

sábado, 16 de junho de 2012

Lars Danielsson - The Linden

a vida por um tri(s)te


a vida por um tri(s)te



regressa à página vazia

a esse torpor húmido

de uma primavera sem flores

à asa suspensa

no aparo do medo

dentro de si procura a palavra

a raiz primordial

rastilho para o grande “boom”

do princípio de um novo mundo

as sôfregas mãos

presas nessa hidráulica

que liberta a corrente

da humanidade

que faz cair o pano

e o atordoa do espanto das aves

fósforo que acende o sorriso no olhar

o dedo a florir no gatilho

espreitas no longo cano negro da vida

o dourado projéctil

que tornaria vermelha a solidão

sem um pingo de tinta no coração

ele ali está exangue

depois da noite em branco

de regresso ao “felizmente à luar”

da última folha

ao deve e haver do amor e da morte

às estatísticas

de uma maior esperança de vida



Lisboa, 16 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                                                      
“La Page Blanche” René Magritte

Extrato de texto de Philippe Sollers

"Num só Inverno já foram recenceadas mais de cem mil gaivotas pequenas n Île-de-France. Vindas do Norte (Países Baixos, Alemanha, Báltico, Bélgica), riem no céu de Paris. damos com elas nos lagos dos bosques de Vincennes ou de Boulogne, ou ainda nos Buttes-Chaumont. Dormem juntas, às centenas, na superfície aquática. A comida espera-as nos sacos plásticos que forram as latas de lixo das ruas ou do...s pátios dos prédios. Os seus territórios predilectos são os terraços e os espaços saibrados, mas também os aeroportos onde se podem divertir a morrer nos reactores dos aviões, armadas em autênticas terroristas. Aqui na ilha, muitas vezes voam em círculos e aos pares em torno de nós, planam, parecem defender o horizonte, por vezes tentam incursões na erva quando faz muito calor ou o temporal ameaça. Por um instante contemplo a covinha que tens a cima da bochecha esquerda, mão encostada à têmpora direita, a orelha despegada comestível, os dedos, o nariz fino. A questão que reaparece é a da "própria pureza". Isso, não esperava eu. Tu escutas, falas, voltas a escutar com ar sério, sorris, és uma paisagem mutante, passas, a mão pelo cabelo curto, o indicador volta-te um pouco à orelha, ao lóbulo da orelha, o polegar aflora-te a face, tornas-te frágil, mas não, eis-te de novo com força e fulgor. Levantas-te, vais procurar cerejas, que palavra magnífica, cereja, sem falar daquelas que esta induz, morango, framboesa, amora, ameixa, azeitona, mirtilo. Outras tantas sílabas para comer. Sentas-te de novo, atiras com os caroços para as ervas, suspiras, atas outra vez o lenço negro ao pescoço, vejo-te melhor uma das veias, bocejas, um gestozinho da mão direita em frente dos lábios. Dizes que tens sono, que vais dormir, deixas atrás de ti a tarde à contemplação vazia."

A ESTRELA DOS AMANTES

PHILIPPE SOLLERS

The Ingmar Bergman Prophecy