o semáforo
essa árvore cansada de cores
surpreendente gaiola de pássaros onde te surpreendi
os néones
são pássaros na demência da luz
são palavras inquietas e sôfregas na noite dos nossos corpos nus
pela alameda
nossa rua larga onde as árvores se encontram
para os amantes malditos se esconderem e se beijarem
a esplanada onde te vi
era um navio ancorado onde os homens
fingiam aventuras e viagens à volta de um café com ou sem açúcar
a zebra
animal do asfalto
leva-me depressa até ao outro lado do sonho
no beco
onde eras a vítima que se encontrava cercada
e nessa altura abria a porta para que pudesses entrar no poema
eis o largo
onde podemos ver tudo e todos nos podem ver
todos a desejam, todos a podem roubar, depois da minha espada
no chafariz
água fresca e sede antiga
corre na torneira onde se lava as mãos e refrescam as ternas memórias
pelo parque
a raiva e a tristeza pedalam
passam por nós, cabisbaixos, na reviravolta dos guiadores das bicicletas
vais de metro
onde todos cheiram o óleo queimado nas travessas
e sentes, agora mais perto de ti, o coração que está ao teu lado
toca a campainha
insiste para o rés do chão da tua amada
do outro lado, a sua voz eléctrica ou o silêncio ensurdecedor
nas sete colinas
estávamos exaustos no tropel do amor
dos sonhos bêbedos de luz e o cavalo levava o freio nos dentes
paragem do 15
as bátegas de água fustigavam o acrílico
sobre a memória que resta do teu rosto escorre a água da chuva
no passeio
mudei para o outro lado
naquele dia não sei se me trocaste as voltas ou as regras do jogo
os bancos de jardim
são imperfeitos esqueletos de árvores
onde se sentam no princípio e no fim da vida, eternos, o amor e a solidão em osso
ia à farmácia
ficava atónito de tantos cheiros e esquecia-me dos recados
encantado da arrumação dos remédios e da resistência do coração da minha avó
as sargetas
eram bocas de palavras putrefactas
pode-se ouvir além do rumor do esgoto, o rio no reflexo de prata dos peixes
no sinal de trânsito
tu esperas anoréxica, imóvel e erecta
não tens que dizer nada, irei contigo, tu és o meu sentido único e proibido
o marco de correio
onde deixei a carta, poço de segredos e de saudades
as palavras e os endereços acotovelam-se na sua urgência de partir
na cabine telefónica
as minhas mãos estrangulam o fio do ausculta(dor)
do outro lado contorcendo-se na cama, tu mordes os lábios, o gosto do teu sangue
da torre mais alta
olhas a extensão da minha cidade
ali está a meus pés, quase tudo o que juntei para te dar
do zoo
todos os animais passaram perto da minha infância
vou em cima de um elefante ou há um fosso na minha memória
o liceu
esse intervalo da alegria que me confunde
de todas as perguntas e testes, de todo o amor interrompido pela campainha
aquele lago
era um relógio parado na sombra do tempo
reparo na profundidade do teu olhar e remo depressa para chegar a terra firme
no jardim
de escorregas e baloiços as crianças jogavam às escondidas
naquele tempo os adultos viviam às escondidas, não eram para brincadeiras
naquele candeeiro
céptico tutor das trevas
apaga-se o espectro de um vagabundo pois nele triunfa a tua luz interior
vieste comigo dos museus
tu eras todas aquelas belas mulheres que trazias
Impressionava-me a abundância da sua carne e o segredo macio da sua pele
vou ao café
bebo tranquilo as amargas notícias do jornal
pus demasiado açúcar depois de ler perdidamente o teu olhar
água furtada
é um sonho recorrente
o vórtice de telhados, onde, ao teu colo, podia ser eu o gato sentado que sorri
aeroporto
tu, as filas do check-in e os aviões na placa
e a merda de vida, de quem tem de, literalmente, voar entre uma coisa e outra
desço o elevador
venho do firmamento e das nuvens
deixei a cama desfeita, nos contornos dos lençóis paira teu perfume
na biblioteca
andava há dias a ler o mesmo livro
as tuas pernas passavam-me uma rasteira, a cada virar de página
vejo-te na ponte
o seu tabuleiro e seus pilares, pintados de vermelho de segurar a lua
velas brancas sulcando no rio azul, tu dormes e eu já não encontro posição
nas urgências do hospital
foram tantas as noites brancas e as batas brancas
olhavas para os resultados do ECG e para prova de esforço e ficavas pálida
cais
de onde nunca parti
por mais que os teus pensamentos mais chegados, me deixem saudades
eléctrico
esse surreal meio de transporte
no cruzar dos fios e no chiar das rodas, nos carris faiscava o nosso amor em curto-circuito
ambulância
vai aflita pela rua acima
apaga por breves momentos a solidão de todos os transeuntes, por instantes deixei-te ir
meu castelo
entre tuas ameias pouso o arco e as flechas
estou sitiado há vários dias da beleza dos teus seios, desse doce veneno, nunca me canso
no peito uma gaivota
amante dos abismos e do silêncio
sobre o terramoto da cidade e da tua ausência a fúlgida elipse do seu voo
o azulejo
na parede do vazio é uma secreta flor e um beijo húmido
no chão do pátio os mosaicos osculam teus pés que derrotaram o deserto
Lisboa, 17 de Junho de 2012
Carlos Vieira